Crítica ao espetáculo “Somos todos Catirina”, por Alisson Carvalho

Catirina não é um mero nome, estamos todos lambuzados pelo sangue que diariamente tinge as nossas mãos. A Catarina, representada por homens, é o corpo sexualizado, violentado, mercantilizado e podado pelo patriarcado. “Somos todos Catirina” é um olhar para dentro de si, uma reflexão a respeito de todos os preconceitos que nos atravessam, que nos violentam e que também reproduzimos.

O espetáculo é uma mostra do trabalho desenvolvido pelo Coletivo Cabaça que vem movimentando a cena teatral parnaibana e agora rompendo as fronteiras maternas, cortando o cordão umbilical com a cidade, alçando voo por outros céus. Tendo Nill Carvalho, Márcio Gomes e Ryck Costa no elenco, este assinando também a direção do espetáculo, o grupo propõe um olhar sobre as violências que tatuam diferentes corpos.

E o que importa isso? Tudo, afinal a peça trata de um assunto universal, urgente e que deve ser debatido. Por isso, é impossível não se afeiçoar e se chocar com a crueza das cenas que expõem de modo artístico a violência. A peça não se limita, não oferece respostas, não apresenta culpados, não sinaliza um caminho, apenas demonstra as multifaces da violência que macula os nossos corpos.

“Somos todos Catirina” trata de questões delicadas e sem pudores. É um trabalho de construção progressiva e por isso mesmo não engessado, deixando os atores livres na cena para explorar a interação tanto com o público como com o espaço. Uma liberdade bem amarrada no palco e aproveitada para dar uma diversidade no elenco.

Com uma linguagem corporal bem definida e delineada, o Coletivo Cabaça demonstra em cena quais são as expectativas sociais que tanto recaem sobre um corpo. Faz isso mostrando o corpo em cena, apelando para o discurso aquilo que por vezes fica exposto na fisicalidade dos atores. E a peça abusa das possibilidades cênicas, das linguagens, variando gradativamente a trajetória do espetáculo.

A performance ganha novas cores e as questões levantadas são lançadas aleatoriamente ao longo da apresentação. Incomoda, desperta curiosidade e não se torna maçante. A meia-luz parece nos levar para um lugar de intimidade, para a escuridão dos nossos quartos, para o interior das nossas mentes e é exatamente lá onde todo o confronto acontece, onde os contrastes se digladiam, se reconhecem e revelam a sua verdadeira natureza.

O jogo com a iluminação camufla e desvela essas personagens e há uma mistura entre algoz e vítima, no qual pontua de forma simbólica que oprimidos podem também ser opressores e vice-versa.

“Somos todos Catirina” é uma denúncia, um grito de corpos que já não suportam a polidez. Corpos que poderiam se libertar das expectativas, dos papeis, mas que perdem a sua autenticidade devido as coações e o medo de agir, de sofrer.

A peça é um desafio para os próprios atores, envolve a desconstrução de ideias e conceitos. Não existe muletas, o ator é colocado diante do público sem camuflagem e, por isso mesmo, é possível perceber alguns pudores em relação às demonstrações de afetividade ou quando é necessário representar certa intimidade. Entretanto essa limitação que é resolvida progressivamente ao longo da cena e por vezes é justificada com os preconceitos das personagens.

A peça demonstra não separa o simples do grave, aquilo que faz a plateia rir pode constranger, incomodar. É possível então limpar, expurgar-se de si tanta sujeira?  É possível lavar essas máculas que vão pintando a nossa pele ao longo da vida? Cicatrizes que ficam e ferem a nossa história. “Somos todos Catirina” é uma denuncia contra o machismo, contra o feminicídio, contra a homofobia, contra o racismo, contra o preconceito.

Dia 28 de julho (sábado), haverá mais uma apresentação no Espaço Balde, às 20h.

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