Nasci, de Alisson Carvalho

 

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Foto: Caio Negreiros

Eu havia me imaginado diferente, foi quando pensei que talvez aquilo que eu sentia estimulando o meu olfato fosse o tal cheiro de alfazema me despertando memórias incompreensíveis, viscerais.

Era um cheiro tão ínfimo, tão pequeno, uma partícula. Era isso, uma pequena parte de um odor qualquer preparando o espaço balsâmico para o novo anfitrião.

Eu nunca tive tempo para pensar, era tudo muito fluido, muito rápido. Acontece que as voltas são tantas que ironicamente acabamos fadados a cumprir tudo que negamos outrora. Eu me neguei enquanto corria, era madrugada, era correria. Eu mal sabia se estava de fato nascendo, mas se o tivesse choraria tanto quanto chorei no frigir das horas.

Viver tem dessas coisas, a gente não vê, a gente não sente, mas vai deixando o tempo nos atravessar. Então logo o relógio desperta e já foi. Eu devo ter nascido na hora tal do dia tal, daquele mês de maio beirando as bordas de junho.

Fitei o calendário grudado na parede, era necessário precisar os dias, era importante apontar as horas. Era necessário levar isso, aquilo, não esquecer de nada, esqueci. Ela gritou, era chegada a hora. Prometi não chorar, descumpri a promessa. Demorei para entender o que estava acontecendo.

Encarei aquele olhar meigo…

Eu ainda sentia aquela paixão avassaladora que me fez temer a conjunção, ser um conjunto ao invés de um inteiro e ser inteiro estando em conjunto. Escrevi num guardanapo e deixei no balcão da vida o micro poema.

Ela achou e cá sonhamos, cá ficamos, cá sorrimos, cá choramos, cá insistimos, cá vencemos, cá apoiamos, cá-minhamos e cá, mãos dadas, estamos…

Passei nove meses maturando a ideia do nascimento, não tinha a consciência da grandeza do evento até que as ideias começaram a abrolhar e me riscar os sonhos. Acordei diversas madrugadas protegido pela abóboda de carinho daquela mulher.

O que seria do porvir? Preocupei-me, pois não conhecia o mundo.

Tentei fotografar com o olhar todas as minhas inquietações. Percebi a leveza dos meus traços e entendi que era a maternidade me afetando, transformando o meu olhar, modificando os meus pensamentos.

Nasci?

O mundo era iluminado ou sombrio? Tinham luzes? Eram as mudanças chegando ou o meu medo de mudar?

Todo aquele distúrbio no padrão, no cotidiano, foi extremamente perturbador, contudo meu corpo queria a mudança, tudo convergia para o novo.

Bem-vindo ao mundo, disse…

Não era por não saber falar que eu optava pelo silêncio, era pela potência da voz interna. Meu riso engoliu toda a minha fala, eu mal consegui abrir os olhos. Encarei aquele pequeno público, todos aguardavam uma demonstração qualquer de afeto.

Senti o calor, eram os braços, eram os abraços, era um rosto que pareceu confortador, a voz que costumava invadir os ruídos pulsante dos meus dias. Era um filho, era um pai…

Fotografei os olhos chorosos daquele ser, fotografei aquele rosto, grafei na altura do meu pranto um ruído que alegrou todo o espaço. Nasci.

Confundi-me com o próprio nascimento, eram todas as minhas expectativas me tornando um espectador. Eu era ele e ele era eu, olho e câmera, lente e luz, tudo preso na memória, tudo real. Rebelei-me e tornei-me sujeito.

Sou pai…

Autor: Alisson Carvalho
Livro: Rascunhos Líquidos (2018)

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