Reunidos ao redor de uma fogueira, no meio da mata fechada, nas brenhas do Piauí, Bento Afonso, Francisco Neto e Gervásio dividiam um caldo de carne – que tinha mais caldo do que carne – sob a luz de uma lua bem cheia. Eram amigos de longa data, filhos daquela terra fértil e tão fértil, quanto era a terra, era a imaginação e as memórias desses três caçadores.
Naquelas noites, que parecia trazer um inverno que o Piauí não tinha, eles costumavam recontar as histórias que viveram ou que imaginavam que viveram em um passado antigo. E nesse monte de história, a que mais rendia conversa era sobre o tal Pé-de-garrafa…
– Esse bicho ainda há de me pagar! – Gervásio começava a resmungar, com seu jeito valentão que mostrava ser.
– Mas ‘tu acha’ mesmo que aquela caça toda foi perdida por conta do Pé-de-garrafa? – Bento Afonso indagava. Ele era o mais medroso do grupo.
– Oxe, eu tenho é certeza! Não vou me esquecer os gritos desse monstro dos infernos que vive por aí nessa mata a espantar os caçadores justamente quando estão trabalhando.
– Não sei não, Gervásio. Não acredito que esse Pé-de-garrafa pense em espantar caçador. Das vezes que passei perto de encarar esse bicho, ele parecia mais gente perdida a pedir socorro do que monstro a tentar nos matar ou atrapalhar. – Francisco Neto falava com convicção.
– Duvido! – Gervásio remendava – Cansei de ouvir os gritos desse metade homem, metade animal! Eram gritos perturbadores! Se era ajuda que ele queria, o máximo que senti foi vontade de caçar ele e matar…
– Mas isso ninguém consegue! Única coisa que se sabe desse bicho são os rastros de fundo de garrafa que ele deixa por aí – Bento Afonso falava – e, pior, não dá para saber nem a direção que vai, porque são pegadas de fundo de garrafa e não um pé de gente!
– Infeliz! Meu sonho era capturar esse bicho! – Gervásio quase gritava.
– Mais fácil acabar capturado por ele – Bento Afonso falava receoso.
– Faz tanto tempo que ele não aparece por aí, ninguém vai capturar nem ser capturado. Talvez ele tenha se mudado para outro Estado e cansado do Piauí – Francisco Neto refletia.
– Acho que não. Pé-de-garrafa é bicho muito antigo, meu avô falava dele e dizia que era uma assombração presa às matas do Piauí – Bento Afonso contou – Vive desaparecendo, mas sempre ressurge para assombrar com sua forma estranha.
– Se é piauiense ou não, pouco importa… Só sei que vou estar sempre disposto a pegar esse animal ou homem com pé de garrafa! – Gervásio falou em alto e bom tom.
E naquele instante, o silêncio reinou profundamente. A mata ficou mais silenciosa do que o normal. Os grilos pararam de cantar. E uma nuvem densa começou a cobrir a lua cheia que os iluminava. Os três caçadores se entreolharam e sentiram ao mesmo tempo um frio na espinha. Parece que, por ali, alguém ouvia aquela conversa toda à espreita. E essa sensação foi o bastante para os colocar debaixo de suas cobertas e forçar o sono vir.
Na manhã do outro dia, Bento Afonso foi o primeiro a acordar. Francisco Neto ainda dormia. E no lugar de Gervásio, um vazio. E, para completar seu medo, logo notou: no chão de terra de onde acamparam e dormiram, muitas marcas circulares, como se fossem fundos de garrafa, para todo lado, ao redor de todos eles. Um rastro de algo que nunca seria compreendido.
Escrito por Evilanne Brandão.