O teatro suja, por isso saímos sujos do palco, saímos sujos da plateia, saímos com alguma coisa modificada. Se não suja falta algo, ele tem que deixar, tem que tirar, tem que acrescentar. O teatro gruda na pele, se dispersa no ar, envenena cada célula e só percebemos quando tentamos, em vão, parar. Machucados, sangramos no palco, deixamos o palco nos rasgar e, rasgados, vamos deixando o que conseguimos criar.
Não entrarei no mérito das vaidades, tampouco nos nivelamentos. Cada um produz o que quer, o que dá pra fazer e o que consegue (dentro das suas limitações técnicas e econômicas). A qualidade não entra nas entrelinhas, pois criar sangra e não estou aqui para medir a quantidade de hemoglobina criativa de ninguém.
Sujo, eu ando querendo me sujar mais, porque mesmo sem conseguir, mesmo amarrado, mesmo engessado eu vou criando e me sujando. Vejo o negrume escorrer no banho, mas, assim como a cena shakespeariana que me inspirou falar do sangue mental-moral que não larga da mão de Lady Macbeth, eu me vejo sujo por dentro, sujo de um sentimento que me faz chorar copiosamente.
O que eu queria, no termo do trabalho teatral, no final de cada espetáculo, era me isolar e não falar com ninguém, mas enquanto (também) produtor me obrigo a ficar, rir, abraçar, socializar ou dialogar.
Enquanto o carvão escorre, a pele abandona a cor, fica uma sujeira imaginária que me destrói e, consequentemente, corrói cara hectare da minha floresta de sentimentos internos.
Geralmente, no final de cada apresentação, as pessoas conversam, falam de situações que vivenciaram e a Crisálida de Ar vai nos revelando situações absurdas e tocantes. A peça tem nos ensinado muito sobre o assunto, mostrado como o algoz está bem perto, às vezes muito mais perto do que se imagina, às vezes ele é reverenciado e enaltecido na sociedade, às vezes esse mesmo algoz se veste de revolucionário.
Eu penso no teatro sujo, na sujeira tão usada para diminuir a qualidade das coisas, da sujeira usada por Mary Douglas para falar daquilo que foge da ordem. Essa sujeira que não sai vai ser usada por algum freudiano como sinônimo de culpa que está sendo reprimida. Alguns moralistas falarão que sujo é aquilo amoral, aquilo que carece de atributos elegíveis para serem exibidos para a família, a fictícia família nuclear, por isso mesmo o teatro sujo deve ser barrado, pois num-se-pode despertar nada na sociedade que a torne corruptível.
Eu saio sujo de outras coisas, de sentimentos, talvez uma busca pelo distanciamento das correntes da história que estão presas na nossa epiderme, pois somos uma sequela do nosso tempo e carregamos as marcas dessa sociedade.
Nesse sentido, busco pelo corpo-sem-órgãos lá de Artaud (2006), mas sem propor a quebra de nenhuma forma-linguagem, não, estou mesmo interessado em perceber a ação como uma “coisa” que pensa, como um pensamento físico, um pensamento que se expressa por meio do corpo, ou melhor, um pensamento-corpo que só age como se reagisse a um estímulo do mundo sem necessariamente ser comandado pela coisa-razão.
Enquanto a sujeira se esvai, eu vejo uma ligação. O poeta Lizandro começa a conversar sobre a história da sua família e como os algozes, os antigos senhores de escravizados estão por aí explorando mão-de-obra. Apesar disso, os jornais carecem de denúncias, e a Crisálida enfrenta resistência em aparecer no horário “nobre”, então eu vejo o quão difícil é para a sociedade falar sobre a exploração, como os meios de comunicação evitam dizer que sim: TEMOS TRABALHO ANÁLOGO À ESCRAVIDÃO!
A sujeira de sentimentos retorna, lembro-me das entrevistas e de tudo que aconteceu na construção da peça, o que suja não são os elementos cênicos, são os sentimentos, pois nenhuma vassoura limpa os relatos que ficaram e a Crisálida de Ar vai se transformando, mudando em cada local apresentado, com cada depoimento, com cada sentimento compartilhado.
Que sujeira é essa que não sai? Que teatro é esse que não nos deixa entretido? Que arte é essa que insiste em tocar naquilo que fere a alma? Por que tudo que eu penso, escrevo, falo, pinto, gravo, danço, interpreto, esculpo, modelo, construo, crio tem que ser tão oneroso, tem que me destruir tanto? Por que a criação não é algo leve? Banhar não limpa a alma dos detritos da criação, por isso eu passo tanto tempo para criar, geralmente migro de arte até ter fôlego para retornar.
Agora estou prendendo (na parede) os pratos com artes de um artista e pensando, poxa, que foda! Eu gosto de coisas assim, sujas, sujas de sentimentos, sujas de pensamentos, coisas que ferem, o drama da “crueldade”, por isso sempre terá sujeira. Sujeira, segundo o pensamento vigente é aquilo que a ordem despreza, que precisa ser curado, apartado, dirimido, banido da sociedade, é a impureza.
Falarão da arte bela, a arte pura, a arte que enobrece, a criação que aproxima de Deus, do puro… Eu acho que prefiro ficar sujo e me aproximar da humanidade.