Identidade Piauiense na Teledramaturgia de Maior Audiência: Você se identifica?

Por Jasmine Ribeiro Malta

 

A busca por referências de alta projeção no âmbito nacional faz o piauiense apegar-se às mais diversas possibilidades, do poeta que odiava a capital à comediante que não sabe fazer graça. Essa procura por uma representatividade que apareça para todo o país, nos leva a “engolir” subprodutos como o agora reprisado na novela da tarde.

O tom de comédia romântica não desobriga a novela de sua responsabilidade enquanto mensagem com sentido. Talvez, isso mesmo “talvez”, apenas não deixe tão fácil e clara a captação de tais intencionalidades. Afinal, o telespectador está mais entretido com o romance, as desventuras e as intrigas circundantes do trio de protagonistas. Como professora universitária e estudiosa do texto, não poderia deixar de fazer menção a Roland Barthes e seu “O Prazer do Texto” (2020) cuja referência é voltada para as múltiplas possibilidades interpretativas de uma obra, segundo a visão de mundo de quem a recebe. Dessa maneira, apresento neste ensaio uma leitura própria e particular sobre uma telenovela a partir de minha recepção e horizontes de leitura analítica para seu significado, nascidos de um texto e projetados para a televisão, resultando na interação com este produto.

Quando exibida pela primeira vez, “Cheias de Charme” provocou certa comoção devido ao fato de trazer personagens do Piauí e exibir cenas gravadas no Estado. Em um primeiro momento parecia encantador estar diante de imagens familiares em rede nacional, na emissora de maior audiência televisiva. Claudia Abreu, responsável pela vilã protagonista, brilhava em seu figurino Tecnobrega inspirada na paraense Gaby Amarantos, há época explodindo com o sucesso musical que foi o tema de abertura da novela. Chayene era uma cantora de sucesso cuja base de fãs era constituída por empregadas domésticas, e sua música carro-chefe era “Voa, Voa Brabuleta”. Detalhe digno de nota para o título da canção que não traz uma “borboleta”, mas sim uma “brabuleta”.

Se você, assim como eu e boa parte dos nascidos ao final dos anos 1970 e início de 1980, esteve em frente à televisão acompanhando telenovelas, sabe que presenciamos o auge das narrativas dessa natureza. Convivendo tanto com bons textos, quanto com fiascos insuportáveis! E foi nesse período em que o sotaque nordestino foi consolidado como um misto de “baianês” com “pernambuquês”. Aguinaldo Silva dava a fórmula em uma de suas entrevistas, perdida no tempo impreciso da memória: era preciso alternar o asfalto (uma trama urbana passada em alguma grande cidade do sudeste), com a areia (as praias nordestinas de água quente e sol o ano inteiro, de preferência, ou uma sudestina cidade interiorana e seus conflitos rurais). No consagrado e disputado horário das 20h, essa receita era mais do que necessária, era certeza de sucesso com o público e com os patrocinadores. Não podemos esquecer que a telenovela brasileira é um produto comercial bem sucedido até hoje!

Tratar a nossa oralidade nordestina como um regionalismo universal afasta o telespectador local de uma possível identificação e, portanto, adesão ao produto cultural[1]. Afinal, “não falamos desse jeito”. Um incômodo bastante exemplar é o uso recorrente do termo “curica”, que em bom piauiês é uma ofensa, palavra de baixo calão para ofender as mulheres, semelhante à aplicação de “pipira”. Na Teresina dos lampiões e do apito da fábrica, as trabalhadoras saíam ao final da tarde em sonora algazarra por mais um dia de atividade cumprida e viravam espetáculo visível aos homens desocupados, que estavam vagando pelo centro da cidade, apreciando e provocando esses grupos[2]. O mesmo termo era utilizado para com as mulheres que frequentavam o circular passeio do flerte, na antiga Praça Aquidabã, e não pertenciam à “juventude dourada da nossa capital”; pois eram comerciárias, domésticas ou apenas moças solteiras de famílias pobres. Então, cada vez que uma das personagens aplica um sonoro “curica” está xingando uma mulher em rede nacional. E, claro, nos afastando dos índices de audiência local. É de pensar se ninguém alertou os criadores da telenovela em questão sobre isso, ainda em 2012 durante a primeira exibição. Até porque, as reprises nos mostram o quanto existe de um tempo demarcado na obra, seja tanto para a Moda, quanto para o Design de Interiores, ou para a Música e os hábitos sociais da época. Vide a adoção das frases: “Esta é uma obra de ficção coletiva baseada na livre criação artística e sem compromisso com a realidade” pela própria TV aberta, e Esta obra reproduz comportamentos e costumes da época em que foi realizada, por um de seus canais pagos; ao final de cada programa ou de capítulo reapresentado. Cabe, portanto, ao público inquietar-se e questionar valores desse passado, atuando criticamente sobre a presença e possível repetição no presente.

Uma personagem não é construída apenas pela fala, sua caracterização é um constituinte importante para marcar uma época, ou relegar ao esquecimento. Para isso, esta análise recai sobre o núcleo de piauienses da novela, com maior destaque na trama, em questão: Chayene – Jociléia (Claudia Abreu – carioca), Maria do Socorro (Titina Medeiros – potiguar), Ivonaldo (Fábio Lago – baiano) e Dona Epifânia (a inesquecível Ilva Niño – pernambucana, imortalizada pela sua “Miiiinaaaaaaa” de Roque Santeiro). Informar a naturalidade de cada atriz e ator ajudam a mergulhar na constituição feita e na entrega por meio das performances, inclusive no tom da fala e figurino. A eterna fome de Chay, que merenda maria isabel com cozidão, Socorro e sua gana pelo sucesso à qualquer preço, Naldo e seus temperos secretos e Epifânia em seu matriarcado de ferro: todos nos remetem ao imaginário coletivo sobre o nordestino brasileiro, ainda mais de uma distante “província” chamada Piauí. Lugar fornecedor de trabalhadores com sua migração pautada na extrema pobreza, com um domínio sobre uma cultura popular mágica e misteriosa, com pessoas garantindo a sobrevivência pela esperteza, onde as mulheres são fortalecidas pela perpetuação de um vínculo com o cangaço e por assumirem o comando familiar após partida de seus companheiros. Nas entrelinhas da obra teledramatúrgica são essas as heranças, e também fica neste mesmo espaço do subtexto o objetivo da oprimida em ocupar o lugar de sua opressora.

A cidade de Teresina pouco aparece apesar de muito mencionada, e, em certo capítulo focou o bairro Dirceu Arcoverde através da visita de Socorro acompanhando o empresário musical de Chayene, na busca por desvendar um episódio do passado envolvendo um tal chá de ferra goela. Além dos temperos afrodisíacos utilizados por Naldo no cozimento de sua gastronomia pesada, e das beberagens fortalecedoras de Dona Epifânia, surge uma arma secreta, poderosa e viciante no formato deste chá. Assim, deixando a entender a típica culinária piauiense como uma produção pitoresca, de encantamentos e complicada digestão quando partindo deste núcleo televisivo. A casa visitada pelos personagens não estava em nosso bairro e também não era na capital piauiense, com recursos audiovisuais era possível reconstruir o ambiente desejado e, assim, proporcionar uma visão mais verossímil.

Para criar e desenvolver uma representação identitária, além das simples menções culturais contextualizadas é preciso ter o olhar de aproximação para com o ser representado. Não basta apenas um arremedo de sotaque, ou uma palavra fora de contexto, é necessário ir além destes fatores externos. Ou ficaremos ainda como nos tempos do Império onde tudo que estava no mapa acima da Corte era Norte. Uma televisão aberta passa a ser educadora no momento em que o telespectador questiona seus valores, aprecia criticamente seus produtos e se percebe enquanto consumidor, analista e avaliador dos mesmos. Uma audiência passiva apenas reproduz a cultura de massa e consolida seus modelos limitantes, em pleno século XXI não dá mais para ficar apenas zapeando.

 

Referência:

BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. Perspectiva: São Paulo, 2020.

 

[1] Sim, a telenovela brasileira é considerada um produto cultural, já tem um tempo, indo além de seu caráter comercial; vide as premiações e aquisições por canais internacionais.

[2] Sem muita diferença das rodinhas masculinas nos cafés de shopping, atualmente – numa cidade ainda tão machista, excludente e discriminatória com as mulheres. Porém, trataremos sobre em outra oportunidade.

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