A Invasão, por João Wilker

Ela pôs a cabeça para baixo e acelerou o passo. Conhecia o caminho, e planejava dobrar ali à esquina. Era a calçada de sempre. Não poderia ser outra, ela tinha o que fazer e era urgente, porque não poderia ser menos urgente do que o dia-a-dia, mas caminhava agora sem a certeza de toda manhã. Mantinha os olhos fixos no chão.

 

Se impedia de olhar para trás para refrescar a memória do que viu, o par de olhos por aquela sombra. Quase unicamente. Jurou ter visto uma silhueta, coberta por roupas pretas e segurando algo de um metal escuro. Mas não tinha erro, olhara para os olhos, e eles a viram de volta. Apenas poderiam ver, era a única pessoa naquela calçada. 

 

Dobrou na primeira oportunidade, com as orelhas tensas e queimando. Lembrou que as orelhas ardem quando falam da gente. Meu deus, estaria ele contando aos comparsas? Meu deus, teria comparsas? Não via razão em parar ali. Pensou em dar mais duas dobras e voltar por outro caminho, mas para isso estaria se aproximando novamente. Continuou. 

 

Os braços cruzados sobre a mochila que usava à frente tinham os pelos eriçados, ela sentia agora cada cabelo do corpo, e a temperatura. Ela ficava mais quente, ou o mundo ficava mais frio? Dobrou uma segunda vez, para a direção que ia inicialmente. Estava feita, pegaria um ônibus em outra parada, onde ele não poderia encontrá-la. Tentaria encontrá-la?

 

Um som motorizado a fez conter uma exclamação. Moto. Vinda de trás. Ela acelerou o passo a um dos postes de concreto, pôs-se atrás dele, olhou de mansinho pelos buracos da estrutura… A moto passou ao seu lado com velocidade. Ufa. Teriam a visto? Sabiam onde ela estava? Certamente não eram rostos conhecidos, tinham capacetes, dava de ver só os olhos…

 

O pensamento a fez titubear mentalmente. Agarrou suas coisas e voltou a andar com passos largos, tentando manter a coluna ereta. Evitava olhar para as árvores. Poderiam estar no escuro para observar sua atitude suspeita, e quando confirmassem que era ela…

 

Pôs um basta. Olhou para um lado e o outro, pelas grades de portões, olhando as construções e procurando um segurança ou apenas algum outro. Segurava os pensamentos. Não era um caso de jornal, como os que lera. Ela estava prestes a encontrar alguém, se virar e continuar o caminho até em casa, onde acharia mãe, pai e cachorro a esperando. Teve vontade inclusive de ver o irmão chato. Por quê? – ela pensou – Não é como se algo fosse acontecer com ele. Mas… Se acontecesse? 

 

Não encontrou ninguém com a vista. Também, era difícil até de lhe escutarem. Mas isso já deveria ser motivo suficiente para gritar dali mesmo. Melhor, para apertar ainda mais o passo. Melhor, para correr! Mas se corresse, perceberiam que ela estava nervosa, e saberiam que ela os descobriu. A única resposta é andar. Andou. 

 

Quando percebeu as próprias pernas tremendo, imaginou se não conseguisse mais andar. Aí lhe pegariam fácil, a mata era densa e… Não, facilmente já deveriam ter se perdido. Melhor, não deveria haver nenhum deles! Talvez fosse só um faxineiro, ou policial, ou exterminador, ou alguma dessas profissões em que se precise de máscaras. Para a boca, e, naturalmente, para o cabelo… Tinha que ser. 

 

Chegou até a parada. Sentou-se no banco, as pernas presas uma a outra cobertas pela mochila abraçada, o cabelo solto para os lados do rosto a fim de cobri-lo. Olhava ainda para o chão. Se não a tivessem seguido até aqui, estava segura. O ônibus não iria demorar, certamente. Logo veria o lar. 

 

Batia um dos pés contra o chão, tinha os lábios secos. Lembrou da sombra, dos olhos, deveria ter sido uma invasão, e aquilo, na mão dele, uma arma. Não, diremos um pé de cabra. Se fosse uma arma, não teria ele atirado…? Ou, atiraria, ainda? Não importava. Ele havia entrado e estava no processo de recolher as coisas quando aconteceu – ela deduziu -. Não poderia ter deixado as coisas, a não ser que outra pessoa as tivesse pego. Tinha comparsas? 

 

Um som de motor distante a assustou novamente. Poderia ser um carro, ou uma moto. Poderia ter janelas pretas e blindadas, das quais só daria para ver os olhos dentro. Poderia ser muito rápido, e grande, visto o barulho. Ela não teria tempo para fugir, pensou. Era mais vantajoso ficar de cabeça baixa. A invasão teria terminado, e estavam agora atando as pontas… Tinha-lhe visto, ela tinha o visto, quando invadiu sua cabeça e…

 

Ônibus. 

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Escrito por um aluno da Universidade Federal do Piauí, em protesto por mais segurança, para que não vivamos invadidos pelo medo.

João Wilker da Fonseca Marques

Nascido em Teresina – PI, 19 anos, estudante de Letras Português na Universidade Federal do Piauí, com trabalhos publicados em coletâneas como a Coletânea Clarear (Centro Acadêmico de Letras Torquato Neto) e Pequenas Palavras, Grandes Sentimentos (Editora Obook), morando atualmente em Timon – MA.

Contatos:

joowilker@gmail.com;

Instagram.com/joaowilkerfm;

X.com/moonyinspired.

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2 comentários
  1. É um texto tenso, e tensa é a situação da nossa cidade, dos nossos estudantes que precisam de deslocar, sem transporte, sem segurança. João traz nessa narrativa algo que já vivi e que muitas vivem diariamente.

  2. Esse texto é ansiedade pura. Muito necessário nesse momento em que não temos nem transporte, nem segurança e o aumento da violência contra as mulheres está aumentando absurdamente. Já vivi isso e sei que muitas vivem essa angústia diariamente.

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