A terra das mulheres peladas

Em minha família somos muitas mulheres, a maioria com a mesma mania. Algo incomum, repreensível e quase inaceitável para os modelos sociais sob o qual fomos moldados: andar despidas pela casa. 

Quase toda gente que me conhece sabe disso. Todas as funcionárias do lar que trabalharam comigo viram partes minhas que permanecem ocultas quando saio de casa. 

Quando o assunto vem à tona é sempre um choque. Um misto de repreensão e indignação porque eu, mulher feita, mãe de dois filhos homens, ando pelada dentro de casa. O leitor pode imaginar a quantidade de absurdos que já fui obrigada a escutar.  

— Você anda sem roupa? Como assim, só de shortinho? 

— Não, eu ando nua. 

— Só de calcinha e soutien? 

— Nua, zero roupas. Às vezes visto uma calcinha, mas soutien, nunca. 

Neste ponto normalmente não obtenho respostas. A depender do meu interlocutor, o que o vejo é uma expressão de indignação e moralismo hipócrita estampado bem no meio das fuças deles. 

Pouco adianta tentar explicar que em minha família isso é comum. Minhas tias, minha mãe e a mãe de minha mãe também são/eram assim. Não há nada de errado. A história nos ensina como a vergonha dos nossos corpos é uma construção social, sobretudo uma construção do outro a respeito de nós. 

Os povos originários não cobriam “suas vergonhas” – para usar uma expressão colonial. Eles as deixavam de fora, ao ar livre, pegando fresca como todo o resto de si. Reconhecer a importância dos saberes ancestrais é mais que saber fazer chazinhos ou identificar raízes com poderes de cura, é compreender que o indivíduo precisa poder existir em sua completude, sem medo de convenções, moralismos ou crendices limitadoras. 

Andar sem roupas pela casa nunca foi motivos de enrubescimentos em minha família, ao contrário, era plenamente compreensível porque moramos em uma terra quente – um país tropical – porque o que somos não deve ser negado, porque existimos antes das roupas que nos cobrem, porque todo o nosso corpo é formado de partes úteis, porque não há razão para nos envergonharmos de quem somos. 

Hoje, mulher feita, continuo a manter firme a tradição de minhas ancestrais de perambular pela casa nua ou seminua, porque sou afrontosa, ousada, porque os conceitos dos outros não me definem. Sou formada e composta muito mais pelas raízes das fêmeas que vieram antes de mim que pelos moralismos que não pertencem ao que me compõe por dentro. 

A minha barriga, os meus seios, as minhas nádegas, as minhas costas, os meus pés são partes de um todo maior, um todo que se compõe de entranhas de mulheres curandeiras, costureiras, bruxas, rezadeiras, cozinheiras e de uma infinidade de saberes primeiros e primários que nos constituem antes de qualquer imposição de modos e moldes coloniais. 

Eu sou uma mulher pelada, e me desnudo todos os dias, até as horas do fim.

Tem alguma história para partilhar comigo? Eu vou adorar saber. Sobre qualquer assunto, os felizes e tristes, de famílias, amantes, amigos, festas, morte, paixão ou doença. Tudo vale. Posso garantir uma escuta atenta e forte. 

Email: deniseverasletras@gmail.com 

Instagram: @deniseveras1 

Ilustração: “Escultura, Estátua, Escultura de bronze”. Disponível para uso gratuito em: https://pixabay.com/pt/photos/escultura-est%C3%A1tua-507342/ 

Sair da versão mobile