Crônica expressa

Minha mais recente leitura foi Fédon ou Da imortalidade da alma, de Platão. Nessa obra Platão nos coloca frente a frente com um dos maiores filósofos de todos os tempos: Sócrates. Este que foi condenado a cometer suicídio como pena por “corrupção dos jovens” com “ideias subversivas”. O filósofo teria corrompido seus alunos ao fazê-los pensar, refletir sobre aspectos importantes inerentes à natureza humana, como a vida, a morte, a alma e a ética. No dia de sua morte Sócrates legou aos seus discípulos sua maior lição: a de como morrer sem medo, amargura e, acima de tudo, com dignidade e esperança.

Finalizei a leitura em estado contemplativo, refletindo sobre a sabedoria desse mestre que partiu deste plano de maneira prematura, mas não culpou ninguém por sua sorte. No dia de hoje quero aproximar o ensinamento de Sócrates, trazido à baila por Platão nesse belo ensaio, à cultura de nosso estado.

É fato que muito avançamos nessa pauta, que o Piauí já foi um estado em que a cultura não acontecia fora de seu “ambiente nato” – por favor não me façam explicar essa expressão, este não é o mote do texto de hoje – outrossim, é inegável que ela ainda acontece acanhada em muitos lugares. Neste aspecto, o poder de minha pena não aponta para a falta de recursos públicos, tampouco gastarei o meu francês com acusações vagas, reclames subjetivos e argumentos soltos. Não. Hoje tenho alvo certo: os artistas.

É cômodo usar o espaço que se tem para fazer o que mencionei acima, sem sinalizar com clareza a quem se quer atingir. Como não sou afeita a inverdades e tampouco a atos pusilânimes, direciono a minha munição a quem acho que merece recebê-las.

Há muito que os eventos culturais da cidade (para não ser injusta e acabar por atingir municípios nos quais não tenho participação) se tornaram um evento privado de compadres. Preza-se pela amizade antiga muito mais que os serviços prestados. Teresina está repleta de figuras que se acham no direito de manipular os acontecimentos artísticos, humilhar colaboradores e expor, de maneira injusta e cruel, aqueles que estão galgando espaço. Comportamentos como os mencionados são muitas vezes validados tão somente porque essas mesmas figuras nasceram primeiro, ou porque têm amigos ilustres. Quero lembrar que com a idade se adquirem muitos benefícios, mas o direito de ser estúpido e mal-educado com os outros não é um deles.

Falta a esses mesmos indivíduos a humildade que Sócrates nos ensinou há mais de dois mil e quatrocentos anos. Sim, ele ensinou, nós é que não aprendemos. E não aprendemos porque somos soberbos, porque achamos que o fruto de nossas mentes vale mais que a dos outros, porque cremos que nos grandes salões e circuitos culturais uma amizade longeva é mais importante que a produção artística.

Quero lembrar que a função da arte não é ser bonitinha, é ser incômoda, que os grandes eventos devem promover oportunidade aos muitos produtores de artes perdidos por aí, e não ser palco para puxa-saquismos daqueles que apenas nasceram primeiro e/ou tem apadrinhamento político-cultural.

O público não deve ser coagido a aplaudir qualquer coisa. O povo precisa pensar, e a arte deve ajudar nesse processo. De artistas arrogantes estamos todos fartos, de pessoas que se valem de suas posições, idades ou até mesmo condições emocionais para ofender, acusar e vilipendiar os outros ninguém precisa. O que carecemos mesmo é de gente com coragem para assinar suas próprias cartas dizendo o que acredita, sem medo de perder lugar no próximo salão. O mundo não precisa de covardes, de integrantes da turma do “deixa disso”. Ser artista requer fôlego para produzir, ousadia para se expor e coragem para se firmar. Do contrário será só mais um na foto com os que vieram de fora, como se isso fosse suficiente para validar suas produções.

Já dizia Glauber Rocha: a função do artista é violentar. Complemento com a lição que aprendi com Sócrates: não somos tão importantes quanto queremos fazer parecer, precisamos ser corrompidos.

O teor desta crônica representa o ponto de vista único e pessoal desta escritora, não refletindo necessariamente o posicionamento dos demais membros e/ou colaboradores do portal.

 

Email: deniseverasletras@gmail.com

Instagram: @deniseveras1

Ilustração: “Vista superior do bisturi médico sangrento”, Disponível para uso gratuito em: https://br.freepik.com/fotos-gratis/vista-superior-do-bisturi-medico-sangrento_23181571.htm#fromView=search&page=1&position=18&uuid=80cee865-2b29-4dd9-93c0-fa33885d953f

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