Reflexões sobre/a partir de “A Carta de Esperança Garcia”, por Noé Filho

Chitara Sousa – Foto Eduardo Crispim

Quem me conhece sabe que odeio spoilers. Quando decido assistir a algum filme, tento me blindar totalmente de qualquer informação sobre, como sua história, elenco, gênero, duração. Trailer então… Nem se fala! Não vejo nunca e quando vou ao cinema tento entrar um pouco atrasado ou fico de olhos fechados enquanto passam os trailers que, quase sempre, entregam tudo ou criam expectativas erradas e desnecessárias. E, quando vou a festivais ou mostras, assisto até sem saber os nomes dos filmes.

Por isso, quando escrevi o primeiro texto sobre “A Carta de Esperança Garcia”, de Zezé Motta, Chitara Sousa, Luiza Miranda, Tina Ribeiro, Catarina Santos, Regina Sousa e Maria Sueli Rodrigues, dirigido por Douglas Machado, tentei ao máximo não entregar nenhum spoiler. Mas a pedido de algumas pessoas, vou escrever aqui mais abertamente sobre o que achei desse documentário. Então fica aqui o alerta caso não tenha assistido ainda.

Com “A Carta de Esperança Garcia” foi a mesminha saga, com o fator dificultador de que, como parte da Geleia Total, era inevitável saber sobre alguns detalhes. Na medida do impossível, consegui saber o mínimo possível e máximo necessário, fiquei até sem saber se o caminho escolhido por Douglas para abordar esse tema seria o da ficção ou o do documentário.

Idealmente, adoraria ter assistido sem saber que Zezé Motta estava no elenco, mas acompanhando a divulgação foi quase inevitável criar a expectativa de que ela seria a protagonista do filme. Talvez, porque a intenção do diretor fosse essa ou porque a divulgação usou prioritariamente a imagem da Zezé Motta, inclusive com o nome dela sempre em primeiro na lista do elenco, ou porque Zezé Motta é Zezé Motta.

Só que, pelo menos na minha opinião, o filme pararia em pé plenamente sem a Zezé. Ela cumpre no filme o papel de uma coadjuvante brilhante. Brilhante, importante, faz a diferença, mas coadjuvante. Vejam bem, aqui não é uma crítica. É um elogio. Eu amei o fato de a Zezé estar no filme e estar lá como coadjuvante.

A cena dela cantando “Cafuné” é uma das minhas preferidas. Sem falar na importância histórica de ter a Zezé Motta lendo e interpretando a carta de Esperança Garcia, e uma importância histórica maior ainda tê-la lendo a carta da Professora Maria Sueli. São registros históricos preciosos, de valor imensurável.

Ter a Zezé como escada para as protagonistas tem uma simbologia enorme e empodera as narrativas das mulheres que nos são apresentadas. Nos faz ouvir com mais atenção, nos faz entender com mais profundidade o que essas mulheres, que não são personalidades, celebridades da mídia nacional, mas que representam muito as Esperanças de hoje, têm a dizer. Quer algo mais poderoso e simbólico do que colocar Zezé Motta para entrevistar todas essas mulheres, ou seja, de usá-la para jogar luz ao que elas têm para nos dizer?

Zezé Motta, Douglas Machado e Chitara Sousa – Foto Eduardo Crispim

Principalmente a Chitara. Mas antes de falar um pouco mais da protagonista entre as protagonistas, preciso falar de outra cena marcante para mim. A cena entre Tina e Solimar. Difícil escolher, mas talvez seja a cena mais marcante e sensível do documentário.

Tina é um acontecimento, uma força da natureza. Tem um magnetismo, um carisma… Fiquei até pensando no quanto eu gostaria de assistir a um programa apresentado por ela. Quero ver mais a Tina, ouvir e aprender com os encontros que ela pode nos proporcionar. Para mim, ela é uma apresentadora nata. Tem a capacidade de falar, de se comunicar, de ser didática, mas sabe escutar. E em tempos em que as pessoas estão preocupadas em falarem e serem ouvidas, ver a Tina em “A Carta de Esperança Garcia” se entregando ao escutar é de arrepiar.

E, nessa cena que estou aqui destacando, Tina escutou. Escutou outra força da natureza: Solimar Oliveira. A cena nos conduz a tantas reflexões, que somente esse encontro da Tina com Solimar já poderia dar outro filme.

Tina Ribeiro, Douglas Machado e Solimar Oliveira – Foto Breno César

Não é possível falar de resistência do povo negro, sem falar das religiões afro-brasileiras, como a umbanda e candomblé. E diria até mais: não é possível entender o Brasil sem nunca ter pisado os pés em um terreiro. Por isso, a importância de toda essa cena, encontro e diálogo ter acontecido neste território.

Solimar ressalta que a história do povo negro está sempre em construção, em reconstrução, em redescoberta, justamente pelos tantos apagamentos e pelos novos encontros como foi a própria carta de Esperança Garcia, que, apesar de datar do século XVIII, foi descortinada há poucos anos.

Estamos sempre ressignificando e entendendo nossas narrativas. Esperança Garcia é sempre apresentada como uma mulher excepcional. Porém, eu discordo completamente disso. Esperança não foi uma exceção. Ela merece ser celebrada pela sua representatividade, e não por sua excepcionalidade. Assim como ela, outras pessoas escravizadas também eram inteligentes, corajosas, potentes, dentro de suas possibilidades, e lutaram de diversas maneiras contra o sistema que as aprisionava. A história do povo negro no Brasil foi marcada por constantes lutas e resistências, mas infelizmente muitas dessas lutas foram esquecidas e deliberadamente apagadas.

Por isso, a mulher no filme que melhor representa Esperança é a Chitara. Não é uma personalidade histórica da cultura brasileira, como Zezé. Não é uma Governadora, como Regina. Não é uma liderança potente, como Tina. Não é uma cantora que ocupa tantos palcos de destaque, como Luiza. Não é uma professora prestigiada em uma das melhores escolas do Brasil, como Catarina. Não é uma acadêmica brilhante e uma política inesquecível, como Sueli.

Chitara não tem sobre ela os holofotes e um séquito de fãs e seguidores. Chitara tem força, coragem, determinação, carisma, carinho, sensibilidade e semeia futuros e resistências como tantas e muitas outras mulheres pretas deste país, mas que não têm suas histórias vistas, contadas, ESCUTADAS, exibidas em grandes telas.

Chitara Sousa – Foto Andressa Vieira

Não creio que seja à toa que Chitara abre e encerra o filme. A cena de abertura é uma cena em que Chitara filma a si mesma, se autorretrata. Já na de encerramento, Chitara se filma dando aula para crianças. Quer melhor maneira de encerrar um filme do que falar sobre esperançar?

Além disso, o filme é entrecortado com cenas produzidas por Chitara, nas quais nos apresenta seu cotidiano e aspectos que ela julga importante de sua vida. E isso fez toda a diferença, porque pudemos ver a protagonista entre as protagonistas, adonando-se da sua imagem e do que gostaria de nos apresentar.

O encontro entre Zezé e Chitara foi o mais interessante de se acompanhar, e foi onde visivelmente Zezé se emocionou mais. Chitara desmontou a Zezé com sua verdade, seu carisma e seu berimbau.

Chitara não é uma exceção. Chitara é representativa. Ela representa, como Esperança. É uma amostra fidedigna desse todo de mulheres pretas do nosso tempo. Ao final do filme, a sensação mais viva em mim foi a de que gostei de conhecer a Chitara e de ser inspirado por ela.

Escrito por Noé Filho.
Revisado por Paulo Narley.

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