Texto: Igor Ganga
Revisão: Paulo Narley
Ontem, quarta-feira, 25 de outubro, o Theatro 4 de Setembro se encheu de tambores, de axé e de força ancestral, por meio do espetáculo Ponha os Olhos em Mim, da coreógrafa e bailarina piauiense Luzia Amélia. O ano já começa a se encerrar e, como já é tradição aqui em Teresina, a dança é celebrada no Junta Festival, que reverbera muitas questões contemporâneas através do movimento. E é tão bacana ver o comprometimento sociopolítico de todes que fazem esse festival lindo!
A maior casa de espetáculos do Piauí foi palco, nesta noite, de uma poderosa confluência de expressão, denúncia e celebração. O teatro se tornou Terreiro. A magia do axé foi invocada. Mulheres negras, na força das Yabás e tendo Oxum à frente, dominaram nossas atenções – e sentimentos – em luz, gestos e sons. Entre os brilhos e ouros daquela Orixá das águas doces e as gargalhadas de Pombogiras, pudemos vivenciar uma pausa no espetáculo. Isso me chamou muito a atenção, pois aquelas mulheres, guardadas e inspiradas pela dimensão gigante de Luzia, postaram-se em fila, em corrente, e, diante de um microfone, fluíram suas histórias e as de suas antepassadas.
Era um rio em curso. De palavras. De lágrimas. De luta. De sorrisos. De cuidado e de cura. Oxum estando presente a derramar o bálsamo de suas águas, a incomodar o status quo, levando-me a ver que a todo momento, nesse fluxo, um imperativo se impunha naquelas vozes embargadas de coragem e inspiração: Ponha os olhos em mim! Ponha os olhos em mim!
Esperança Garcia presente no rio de Oxum é a cura.
O imperialismo, com o racismo, é total. É econômico, político, militar, cultural e psicológico, como diz o professor Wa Thiong’o, em seu livro Decoloninzing the Mind, o que evidencia o fundamental papel de expressões alternativas engajadas na luta, das quais as danças negras são exemplos seculares. A alienação colonial que se constituiu por essas bandas do mundo produz uma dissociação, um distanciamento de si. Ele reportar-se-á ao colonialismo como produzindo uma sociedade de cabeças sem corpos e de corpos sem cabeças, no sentido de que uma harmonia é quebrada: o vínculo consigo, com sua linguagem, com seu ambiente. O que ocorre é que uma Bomba Cultural é lançada desde a Europa, desde o século XVI, e tem provocado estragos indizíveis, que abala as nossas crenças em nossos nomes, em nossos estilos e estéticas, em nossas maneiras de falar, em nossas heranças de lutas, em nossos antepassados, na nossa possível unidade e inteireza, em nossas capacidades e em nós mesmos.
Grada Kilomba, em seu livro Memórias da Plantação, completa usando a máscara usada por Anastácia[1] como descrição desse colonialismo, dizendo que ele é uma longa história de silêncio imposto, de vozes torturadas, de línguas rompidas, de idiomas impostos, de discursos interrompidos. Essa máscara, uma ferramenta de ferro dentro da boca da pessoa, entre a língua e o maxilar e amarrada por trás da cabeça, simboliza as políticas sádicas de conquista e dominação e seus regimes brutais de silenciamento. Isso me remete ao conceito destacado pela psiquiatra negra Neusa Santos Souza, o de emocionalidade da pessoa negra, que, segundo ela, é uma construção histórica, sendo uma maneira própria de organizar e lidar de forma dinâmica com o mosaico de afetos em mundo hostil e racista.
A pessoa negra é colocada em lugar nenhum, na posição de objeto, de “outridade”. A mente colonizada vivencia um mosaico de afetos dissociados, pela alienação colonialista, que acarreta um afastamento de si e tendo como resultado uma percepção comprometida do mundo. O paralelismo entre a cor negra, e todas as outras características relacionadas a ela, e a uma posição social inferior, gera uma fragmentação da pessoa consigo, com as outras pessoas e com o mundo em redor, ou seja: afeta os processos de correspondência, tão fundamentais ao ciclo de cuidado.
Lélia Gonzalez falou de uma sintomática neurose cultural brasileira. Ora, se a emocionalidade negra, constituída historicamente, faz parte de algo mais amplo, com a contribuição de Gonzalez, posso afirmar que esses processos de atenção se constituem em um amplo contexto de racismo, que ela insere, influenciada pela Psicanálise, na noção de neurose cultural. Essa autora diz que pessoas negras estão na lata do lixo da sociedade brasileira, como é determinado pela lógica da dominação, que tem nos colocado no locus da irresponsabilidade, da incapacidade intelectual, da “criancice”, entre outras coisas.
Mas a alegria é também uma forma de resistência! Como diz a gigante Sônia Terra, não somos coitados, não nos trate assim. Somos luta, somos júbilo, somos festa. Isso acontece quando os risos de Pombogiras inundam o Theatro 4 de Setembro. E toda a força das Lebaras, das Padilhas, das Mulambos, das Rosas, das Meninas, das Navalhas (encarnadas nas bailarinas) se postam no eixo do mundo, na encruza para desfazer as demandas da misoginia, do racismo, da transfobia, do colonialismo. A encruzilhada surge como uma disponibilidade para novos rumos, como um campo de possibilidades, prática de invenção e de afirmação da vida. Emerge como uma perspectiva transgressiva à escassez, ao desencantamento e à monologização do mundo, imposta pela Europa. O caminho cruzado suscita a lógica do jogo, que não pode ser vencido sem a ciência da Macumba, sem a amarração de múltiplos saberes encantados. Assim, o fluxo e a dinâmica fazem a vida acontecer em correntes, sendo sua construção uma modalidade de tecelagem, em que a dança é uma imagem eloquente.
As religiosidades afro-brasileiras, como o espetáculo de Luzia Amélia retratou tão bem de maneira transversal, é um contraponto histórico ao colonialismo e ao racismo estrutural, por isso não temos como falar de culturas negras e não falar de nossas manifestações religiosas, uma vez que são referências de nossas lutas. Longe de serem “primitivas”, são um sistema de grande complexidade que, paulatinamente, incrementa a força espiritual e social de seus membros, em maioria mulheres negras. Vejo que pela periodicidade dos ritos e pelas sucessivas graduações (fazimentos), em um processo que pode levar anos, forma-se uma pessoalidade-identidade, que vai da incompletude à integralidade.
Vê-se, assim, nascer uma pessoa lentamente, o que corrobora para um processo de manutenção, de um equilíbrio, em que uma pessoa fragmentada, a partir de uma possibilidade para a integralidade é recomposta. Esse fato me remete ao final do espetáculo, em que vasos são quebrados em meio àquelas gargalhadas exúlicas. Um rompimento com a fragmentação imposta.
O espetáculo Ponha os Olhos em Mim me remete ao mestre Nego Bispo, que suscita um termo que resume o que vivi ontem à noite, o de confluência. Ora, confluência diz respeito a relações respeitosas, orgânicas e biointerativas que estabelecem os elementos vitais que nos circulam e que encontramos. Essas trocas são pautadas na diversidade, em que podemos transformar nossas divergências em um fluxo de experiências, em relações de cuidado. Audre Lorde afirma a necessidade de mulheres negras cuidarem umas das outras, pois isso é redentor a todes nós e é, a partir dessa lógica de movimentos e afetos nessa circularidade de cuidado, que o conhecimento (enquanto movimento e correspondência entre pessoas negras) de um poder real é redescoberto. Esta autora nos diz, ainda, que o mundo patriarcal muito teme essa conexão verdadeira (esses ciclos de compartilhamento e confluências) entre mulheres negras. Interdependência entre mulheres é o único meio para libertação do “eu” e do “ser” para uma dimensão de ser criativa. Sem comunidade, não há libertação, enfatiza ela.
O caminho espiralado, divergente do que impôs o colonialismo, são os traços que as coreografias da Macumba, por meio de mirongas e mandingas, marcam no Terreiro, enquanto tambores tocam e santos baixam. Foi isso que vi, ouvi e senti no teatro ontem. Um espelho de nossos Terreiros, de nossos Quilombos, de nossas geografias. Reverencio Luzia Amélia, seu poder e suas (nossas) ancestrais, que a trouxeram aqui e a sustentam. A reverencio porque ela proporciona uma maneira dissidente de utilização do espaço do palco, do mundo, das possibilidades, das conexões com outras pessoas negras, que aponta para uma solução, proporcionada pelo movimento da dança, nessa fragmentação ocasionada pela bomba cultural colonial. Pôr os olhos nesses aspectos é testemunhar a desfragmentação, a cura da neurose brasileira, a recomposição, o fortalecimento, o enfrentamento, a biointeração que nasce nos deslocamentos de corpos negros.
Saravá às forças que nos regem!
Ora Yê Yê, Mamãe Oxum! Axé Ô!
[1] Segundo Kilomba (2019), referência à máscara que a escravizada Anastácia era obrigada a usar. A famosa imagem dela – o Retrato da Escrava Anastácia – remete aos horrores da escravidão.
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