O feriado do dia 12 foi oportunidade de visitar Carvalho Neto no bairro São Pedro. Chegamos na casa do poeta pouco depois das dez. A rua estava deserta. Quem atreveria se aventurar naquela via iluminada e quente? Aberto o portão, entramos, Volnim Santos e eu. Depois de mostrar as plantas do jardim, Carvalho Neto começou a falar de poesia. Não há assunto melhor na manhã de um domingo, feriado ou dia qualquer, se é que existe esse tipo de dia.
Na casa de um poeta, o assunto principal é poesia. Carvalho Neto tomou a iniciativa e a poesia começou a jorrar, em poemas propriamente ditos ou em histórias de poemas e de poetas, como os de sua Amarante, berço também de ninguém menos que Da Costa e Silva e Clóvis Moura.
Deste último, Carvalho conta que o encontrou certa vez, solitário, em Amarante, em um bar. O autor de Argila da Memória cumpria uma de suas visitas sentimentais à terra e lamentou não ter visto seu livro na cidade, apesar do lançamento, anos antes, da caprichada segunda edição feita por Cineas Santos, com ilustrações de Fernando Costa e selo da Oficina de Arte. Em resposta, Carvalho Neto declamou Origem, segundo texto de Argila, e meu coração é vazante de rio, poema de sua semeadura. Ao final, Clóvis Moura chorava.
meu coração é vazante de rio
lágrimas de deus ou do diabo
correm nesse rosto argiloso
nesga de sofrimento
peixe e farinha
campos, luas, sumidouros
ninguém vai sofrear meu coração
quando na invernia da memória
eu ouvir a rapsódia amarantina
porque meu coração é vazante de rio
onde plantaram dois alqueires de medo
dez de solidão
sob a verdura das levadas estarei
mansamente louco
porosamente outonal
No lançamento de Argila da Memória em Amarante, em 1983, aconteceu um fato que ainda povoa a memória de quantos estavam presentes no ato. Durante a sessão de autógrafos, uma senhora, que já havia recebido o livro, mostrava para as demais a ilustração de Fernando Costa ao poema Cantiga das Primas da Rua Nova, onde se via o desenho de um pênis. Não quero crer que isso tenha sido o motivo pelo qual o poeta não encontrou sequer um exemplar na sua terra.
As casas estão debruçadas
sobre o rio que passa. Uma semente de aurora
nasce às vezes na cidade quando o Prefeito[acode
ao seu ofício e manda que se faça o calçamento
da rua
que se veste como noiva.Minhas primas ainda estão cantando canti-
[gas de roda
Na rua recém-calçada.
Todos querem passar na rua nova.
E fica batizada: Rua Nova.
Há mais de trinta anos é Rua Nova.
Do jardim e da cozinha, passamos à sala de visitas. Carvalho Neto estava falante e nem se importou que eu gravasse alguma coisa do nosso encontro. Volnim estava ali para lembrar de Elias Paz e Silva, que o apresentou a Carvalho. Mas corrige: “quem nos apresentou não foi Elias: foi a poesia”.
De repente, Ana entra na sala servindo suco de maracujá, no exato momento em que Carvalho folheia os originais de seu próximo livro. Relembra o amigo Francisco Luís de Sousa, que, rapazote na provinciana Amarante, lia muito e tinha ideias que o assombravam. Certa vez, um embaixador cubano dava uma palestra, na qual Carvalho o interpelou porque o diplomata dissera que Che Ghevara não era poeta, ao que Carvalho discordou, usando palavras do revolucionário da Sierra Maestra, que sabia de cor: “Subi a serra, vi a aurora; desci a serra com as mãos cheias de sementes da aurora”. No final, o embaixador ofereceu-lhe um livro, mas Carvalho pediu que autografasse não para ele, mas para Francisco Luís de Sousa. A ele dedicou também
Banhos de luz
Das janelas barrocas do casarão amarantino
Voam ideias luminosas
Do coração de menino.
Carvalho Neto diz que esse será seu o último livro. Por quê? A poesia nos acode, mas há uma hora em que o tempo não permite que você queira traduzir-se: “chega a noite, / ninguém me socorre, / deixo versos / como quem morre”.
Contemporâneo de Belchior, Carvalho Neto estudou na Universidade Federal do Ceará, onde era responsável pela edição de um jornal de estudantes. Um dia, faltou matéria para fechar a edição. Carvalho fez um poema e publicou no espaço que restava. Após a distribuição do jornal, recebeu tantos abraços, que o fizeram dedicar-se à poesia. Não se lembra do poema, mas, quando saía de Amarante para ganhar o mundo, escreveu:
minha rua
é do tamanho da saudade
que sinto agora e que em boa hora
foi vestida em prosa e verso
minha rua, universo, dor contida
longo abraço, hora da partida.
minha rua ficou triste
seca, descolorida, sorriso triste
para mim.
minha rua, meu pedaço
braço do rio Parnaíba
onde deságuam minhas ilusões
sem fim.
Outro contemporâneo ilustre de Carvalho Neto foi Torquato Neto, seu colega no colégio Leão XIII, dirigido por Moacir Ribeiro Madeira Campos. O poeta amarantino nos convida para o cômodo exíguo, onde há uma mesa, livros na estante, chapéus que gosta de usar e fotografias na parede, uma delas de estudantes uniformizados da turma ginasial de 1958. Os dois poetas estão lá.
Emocionado, fala de Amarante, de sua potencialidade poética, de seus artistas. Paga tributo à sua terra, a Da Costa e Silva e a Clóvis Moura. Volta a falar de seu livro em preparo, que espera seja o último, “para que outros amarantinos surjam – e têm lá em Amarante – e continuem esse caminho”.
“Minha maior preocupação é não ter me preocupado com estilo. O tempo é que foi me traduzindo. E a partir daí continuei a escrever o que me vem do coração. Não defino caminhos. Defino a poesia que nos conduz ao que há de mais belo, que é o amor e a dignidade humana”.
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