Zé Balaústre: onde o futuro repete o passado

Foto em preto e branco da Catedral de Oeiras, cidade onde Zé Balaústre escreveu seus poemas-denúncia.
foto por Caio Negreiros

 

Quadras satíricas foram escritas em Oeiras por um certo Zé Balaústre, provável pseudônimo de José Expedito Rêgo ou de Balduíno Barbosa de Deus. Os dois nunca assentiram ou negaram. Pelo estilo, entretanto, os versos parecem vir da lavra de Expedito, que foi poeta, romancista e cronista, com vários livros publicados. Por sua vez, Balduíno publicou apenas um livro, Folhas Caídas, de poesia, em 1964. Há também uma obra póstuma sua, enfeixando Pedaços de Uma Vida (poesia) e Trovas no Brasil (estudo).

As primeiras dessas quadras são intituladas FANTOCHES DO PSD DE OEIRAS, escritas antes da extinção dos partidos políticos pelo Golpe Militar de 1964, que mais tarde instituiria o bipartidarismo com a criação da ARENA e MDB, os dois partidos permitidos pela ditadura.

Zé Balaústre faz um corte cronológico a partir da década de 50, época em que o Partido Social-Democrata (PSD) de Oeiras – seguindo a lógica personalista que ainda hoje rege os partidos políticos brasileiros – era chefiado por um comerciante, chamado pelo versejador de “malabarista-mor”, que manipulava seus “fantoches” e os fazia trabalhar para ele, o “dono do dinheiro”, que fazia “a turma dançar”.

O poeta não afirma textualmente o nome dos fantoches, mas, através de um jogo de palavras, permite identificá-los. O primeiro é “velho boi de chifre torto”, que foi para a Câmara Federal. Outro veio de Goiás, “puxado pelo cordão”, e enriqueceu o malabarista-mor com os “carnaubais do Estado”. E assim vai o poeta desfiando “os bonecos de engonçar” da ópera-bufa oeirense.

Outro fantoche era letrado, gostava de discursar. Isso pode ser visto como um fato isolado, mas no fundo aponta para o histórico servilismo de intelectuais, ou pseudointelectuais (salvo raríssimas exceções), aos chefetes políticos de Oeiras, seja pela adesão explícita ou pela cumplicidade silenciosa.

O chefe só faz prefeito

a quem deixa a gorda cota

girando de qualquer jeito

em suas mãos de agiota.

Seguindo a prática tradicional da política partidária oeirense, na qual os caciques políticos colocam na prefeitura e em outros lugares de poder homens e mulheres facilmente manipuláveis, soou muito natural ao “malabarista-mor” fazer seu genro prefeito. “Com ele o palhaço-mor / sente gosto em manobrar”, afirma o poeta criando a imagem que equipara a política local também a um circo. Entre as figuras bizarras e sem brilho, havia o “Tenório Cavalcante”. Quem seria? Usava metralhadora?

Outro boneco, magro e barroso, dá coices e é “onagro da Câmara Estadual”, alusão clara ao baixo nível intelectual dos representantes do povo, eleitos pelo “voto de cabresto”. Não poderia faltar na sátira demolidora os fantoches que gostam da coisa alheia, numa quadra representados por um “donatário” da Colônia Agrícola, que “não furtou, se defendeu”.

Muitas vezes, o poeta deixa de lado a linguagem cifrada e faz denúncia aberta das apropriações indevidas. Referindo-se, por exemplo, aos membros de uma mesma família no poder, afirma: “Ruas cortaram, verbas desviaram, / tuas finanças cá deixaram rotas”.

No desfile da “cambada pessedista”, há “burrinhos renitentes”, que só não saem do bando porque lhe acenam com empregos. Há boneco de couro fidalgo e sangue de raposa: sabe muita coisa para ser deixado à solta. Outro entende de agricultura, mas só quer vida boa. Há um de bom tino, que permaneceu na lista, “ao lado de Constantino”, da árvore dos “Pereiras de São João”.

Não esconde o poeta sua indignação e a expressa em voz solitária ao ver que no jogo político o poder tenha voltado ao “feudalismo” de outra família. Por isso, lamenta: “És escrava de novo pobre Oeiras! / (…) / O teu progresso vai pelas traseiras”.

E assim segue o poeta na sua veia satírica. Fez muito mais que historiadores e analistas, mostrando com ironia e bom humor o que de fato é a vida política partidária em Oeiras, que, fundamentalmente, não mudou após meio século da escritura dos versos. O tempo passa e a realidade social, política e econômica continua a ser campo fértil em produzir “malabaristas” e “fantoches”.

A segunda dessas sátiras foi intitulada POBRE OEIRAS, e é datada de 1967. É também uma radiografia crítica da política partidária. Sobre determinado prefeito, alcunhado de “Rei Sol”, diz que governou a cidade “Com muita prepotência e muita usura”, fazendo-a feudo da sua família. Após seu “reinado”, o poder passou para outras mãos, que lançaram a pedra fundamental “de uma outra oligarquia que durou / vinte anos e que tanto te fez mal”.

O poeta prossegue sua verve ferina e certeira de “boca do inferno”:

Entra em cena a levítica gentinha:

os mais finos ladrões que te sugaram!

Um mogangueiro dessa raça asinha;

foi o primeiro dos que te assaltaram.

Lamenta a inexistência de forças políticas capazes de se contrapor à política rasteira e mal-intencionada. O cenário parece imutável, sem nenhuma perspectiva alentadora de mudança. Não há sequer um Quixote disposto a lutar contra os moinhos de vento, de triturar gente.

As “pedras continuam no caminho”,

Não chegou a sonhada redenção.

Não há gigante à vista, sem moinho

de vento, os braços a girar em vão!

Que aprendizado podemos tirar da sátira política de Zé Balaústre?

Trata-se de uma voz solitária, que veio a público falar no deserto. Por isso, aparentemente, essa voz fez pouco eco e não suscitou mudanças. Com humor e ironia, ofereceu aos homens e mulheres do seu tempo e de sua cidade um escrito indignado. Se os leitores continuaram (e continuam) de braços cruzados, coniventes com a realidade combatida nas quadras satíricas, isso ocorre não por culpa do poeta, que fez sua parte, necessária, porém insuficiente.

As quadras de Zé Balaústre foram relegadas ao silêncio. Permaneceram abafadas, salvo por uma ou duas vezes que vieram bisonhamente a público. Aqui o silêncio é usado como estratégia de manutenção do “status quo” e sepultamento da esperança.

A realidade política da cidade retratada satiricamente é a mesma da maioria dos municípios, onde a vida pública é regida por um jogo cru de interesses quase sempre egóicos e impublicáveis.

Chegamos ao ponto tocado de forma aguda por Antonio Cândido, no seu livro Literatura e Sociedade, com duas perguntas: “qual a influência exercida pelo meio social sobre a obra de arte?”; “qual a influência exercida pela obra de arte sobre o meio?”

A influência do meio social de Oeiras exercida sobre Zé Balaústre é evidente, poderosamente motivadora das quadras satíricas, devolvidas como resposta àquele meio social que engendrou a realidade combatida pelo poeta. As quadras seriam somente satíricas, não fossem trágicas.

Por sua vez, a influência exercida sobre o meio aparentemente é escassa, devido sobretudo ao proposital silêncio. As quadras satíricas de Zé Balaústre deveriam ter sido impressas e divulgadas maciçamente para leitura e discussão ampla em toda a sociedade. Ainda hoje merecem ser editadas em livros e disseminadas na Internet e em toda parte, para servirem de fermento necessário à mudança da realidade. Enquanto isso não acontece, o presente repete o passado. O futuro também o repetirá?

 

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