Minha gastura por Cultura Popular e Folclore só aumenta, por Noé Filho

Foto de um boi do Encontro de bois em Teresina.

Sabe gastura? Pois então… Toda vez que ouço alguém falar em “cultura popular”, em “lenda”, em “folclore”, em “mito”, em “mitologia”, já bate em mim aquela gastura fina. Em 99% das vezes que ouço esses termos sendo utilizados, sinto que vem junto no pacote umondicoisa que gostaria de conversar aqui com vocês.

Cultura é uma palavra plural por natureza. Quando falamos em cultura, mesmo que no singular, estamos falando sempre de pluralidade, de culturas. Surge, então, a galera que vai lá classificar os tipos de cultura. Essa galera é da academia, geralmente uma galera branca, geralmente uma galera que vem de uma parcela da população historicamente com muito dinheiro no bolso, e geralmente a galera acadêmica tida como referência nem brasileira é. Beijos, William John Thoms.

O que eu quero dizer com isso? Que os estudos do que se entende por cultura, no Brasil, são atravessados por questões raciais, sociais, classistas, econômicas, históricas. O que a academia produz reverbera no nosso cotidiano, em como entendemos políticas públicas, em como a imprensa se comunica, e muitos desses termos e conceitos se distorcem ou simplesmente se desnudam.

Quando falamos em cultura popular, no Brasil, na maioria das vezes, estamos falando de uma cultura produzida pelas periferias, com fortes raízes afro-indígenas, e que muitas das vezes (infelizmente) não são nem populares no sentido de popularidade.

Por falar em gastura, pense numa gastura quando estou assistindo a algum programa e o jornalista vai lá e fala no meio da rua “estamos aqui com um popular”; às vezes, nem o nome do cidadão a gente consegue saber. Em época de eleição então… “Vamos perguntar para os populares o que eles querem para a cidade”. Que pessoa popular é essa que eu nem conheço nem sei o nome? Na verdade, por popular, leia-se, pobre. Duvido que um jornalista vá num bairro chique, num condomínio de luxo, ficar procurando por “populares”. Aproveito para fazer o apelo, galera jornalística, por favor, vamos abandonar esse termo? Será que teriam termos melhores para tratar quem vai ser entrevistado… talvez, pelo nome?

No que diz respeito a folclore, lendas e mitos, todos esses termos são utilizados para desacreditar culturas. E, olha que surpresa, culturas também indígenas, também de origem africana. Alguém ouve com frequência no seu cotidiano falar em lendas bíblicas? Em folclore cristão? Em mitologia portuguesa? Por que tudo que vem das culturas indígenas e africanas são lendas, mitos, folclore, mas para o que vem da nossa herança europeia os mesmos termos não são usados?

Tanto que, quando queremos menosprezar algo, o que falamos? “Ah, isso aí é lenda, viu?” “Ah, essa história é folclórica”. Olha que interessante, lendas, mitos, folclore são utilizados como sinônimos de… mentira, o que não existe de fato. Ou seja, o folclore indígena é mentirinha, historinha pra gente se divertir. Mentira pra quem? Quem disse que todas as “lendas” indígenas são mentiras? Quem disse que não aconteceram de fato? Quem disse que não são genuínas, verdadeiras? Quem define o que é verdadeiro?

Junto com todos esses termos, eu sinto ali aquele desdém, aquele desmerecimento, sinto que surgem para diferenciar a cultura que é tida como séria, verdadeira, culta e chique, e uma cultura que é vista como inferior, vulgar, de menor qualidade, sem autoria.

E, mesmo quando a intenção é valorizar a “cultura popular”, eu vejo altas doses de exotização. E aí vemos geralmente pessoas brancas, ricas, de outras origens e berços culturais, tratando essas culturas produzidas pelas periferias, pelos corpos negros, pelos corpos indígenas, como algo exótico, extraordinário. Sabe quando alguém vai elogiar uma pessoa negra e fala que ela tem uma beleza “exótica”? Então… A pessoa está ali achando que está arrasando fazendo um elogio, mas no subtexto é o puro suco do racismo brasileiro. Dá pra falar de cultura sem falar de questões raciais?

Entendo que todos esses termos têm lastro acadêmico, mas a academia também se renova, se descobre, vislumbra novos termos e possibilidades. Ainda mais quando se fala de quem estuda cultura, essa linha que separa a academia da população (ou populares? rs) é ainda mais mirrada.

Ao mesmo tempo que, como disse, há muito tempo sinto esse incômodo, também não vejo outros termos melhores que possam ser utilizadas, que traduzam mais respeito, que digam mais verdade, que valorizem sem exotizar. Me ajudem! Ficam aqui minhas dúvidas, provocações e o desejo de que possamos tratar as culturas afro-indígenas, as culturas produzidas pelas periferias, as culturas produzidas pelas PESSOAS com a dignidade que merecem.

Por Noé Filho.
Revisado por Paulo Narley.

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