Dedicado a João Vitor Araújo
O livro de ciências da escola dizia que as flores absorvem a tinta guache diluídas em um copo de água. “Então é assim que se fazem flores artificialmente coloridas” – pensei.
Voltando para casa, eu observava os jardins dos vizinhos, e me perguntava quanta tinta seria necessária para colorir todas aquelas plantas. Parecia um experimento simples. Resolvi tentar.
No quintal de casa tinha um mamoeiro antigo que o meu avô plantou quando ainda era moço. Imaginei a expressão de feliz espanto dele ao sair para aguar suas plantinhas e se deparar com buquês azuis, tão azuis que ele poderia ver o céu sem olhar para cima.
Como toda família provinciana, nós também tínhamos o hábito da sesta, o sagrado cochilo depois do almoço. Aproveitei esse tempo para realizar a experiência que me consolidaria como cientista da família e neto preferido. Com cuidado fiz um furo no meio do caule e, com a ajuda de um cano fino e uma garrafa pet, fui despejando a tinta que sobrou da última reforma.
Uma família tão humilde como a que nasci não tinha possibilidades de fazer uma reforma. Na realidade o que meus pais fizeram foi passar duas demãos de tinta na tapada do galinheiro. Seu Maneco da esquina deu um galão de CREL para o meu avô. Presente de aniversário, dizia ele todo convencido com a lata na mão, desfilando pela calçada enquanto cumprimentava os vizinhos e dizia como a cerca dele ia ficar bonita. As galinhas nem iam querer fugir, tão linda ela seria.
Enquanto executava a atividade botânica, a expressão de meu rosto era laboratorial. O rosto em concentração búdica denunciava a seriedade do ato e a importância do feito. Finalizada a tarefa me lavei e retornei triunfante ao meu quarto para os afazeres escolares.
As visitas ao pé de mamão eram diárias. Como um cirurgião que acompanha seus pacientes após o procedimento, eu ia conferir o resultado de minha incursão vegetal.
Dizem que o excesso de luz causa cegueira. Creio que o excesso de visão também. Os quilos a mais no corpo de alguém só são notados por pessoas distantes. Os rotineiros, diários, para esses os quilos vão chegando aos poucos, em gramas, uma por uma, de maneira que só se notam depois da mutação, quando já são dobras escorridas por cima da calça.
Essa é a justificativa que eu me dei para não ter notado a ausência das flores ou de mamões. Em vez disso o que surgiu foi uma mancha preta que aumentava dia após dia. Em poucas semanas descobri que aquela nódoa era sintoma de alguma doença. O pé de mamão apodreceu, quebrou no local do furo e caiu desfalecido. Morto. O que adoeceu a planta foi o meu experimento.
Por anos o toco ficou lá, sozinho, uma lembrança imóvel de meu experimento falido. Ninguém o tirou de lá, como se soubessem que eu precisava ser lembrado de minha falha. Ele não crescia mais, nem sumia dali, tal qual a culpa que carreguei por toda a vida. Perene, constante, imutável, como tudo que é eterno.
Tem alguma história para partilhar comigo? Eu vou adorar saber. Sobre qualquer assunto, os felizes e tristes, de famílias, amantes, amigos, festas, morte, paixão ou doença. Tudo vale. Posso garantir uma escuta atenta e forte.
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Imagem: “Fruta papaia verde”, de Miguel Á. Padriñán. Disponível para uso gratuito em: https://www.pexels.com/pt-br/foto/fruta-papaia-verde-434137/