Fatiado na rua, de Ayrton de Souza

Edição: Auryo Jotha
Revisão: Joana Tainá
Ilustração: Igor Ganga

 

            Tec. Tec. Tec.

            Paro a escrita e penso que o meu trabalho é mais literário do que jornalístico. É preciso, nessas páginas, matar o que a morte poupou. Afinal, como pode um esquartejado andar por aí?

            Tec. Tec.

            Tec.

            Apago tudo, insatisfeito. Eu só quero entregar o fato, nu e cru, apesar de seu estranho brilho. Enfim, que eu escreva qualquer coisa então.

            … de março de 2020.

FATIADO NA RUA

            Como pode um homem dado como morto, estar andando pelas ruas do Centro? Em Teresina tudo é possível! Na Praça da Bandeira, nessa sexta-feira, foi encontrado um homem, da cintura para baixo, jogado na grama. O caso pede um cuidado particular, já que seu desenlace é tão obtuso, frente a outros casos de polícia. 

            Na manhã da sexta-feira, um grupo de mendigos parou na frente de um carro de polícia que circulava pela Praça Rio Branco. Todos eles maltrapilhos e sujos, gritavam e pediam por ajuda, dessa vez, não para eles. A mulher, líder do grupo e também a mais velha, tinha a voz controlada, ao contrário dos outros. Ela teria dito quando a viatura parou: “Tem um corpo morto na Praça da Bandeira!”. Os policias, duvidosos, mas cumprindo seu dever, levaram a viatura até a praça, rua abaixo e, para surpresa deles, não havia um corpo ali, entre o bicar de pombos famintos, e sim meio corpo! O sangue, que devia ser vermelho, estava roxo, quase preto, entre as linhas profundas do chão. A Polícia ligou para o IML, que logo veio junto dos jornalistas e então espalhou-se a dúvida: se uma metade do corpo foi encontrada jogada ao saber de Deus, onde estará a outra metade?

            Na casa do morto, a esposa estava em prantos e com muita raiva, afinal, ele não chegara do trabalho quinta à noite! “Ele deve tá com as raparigas!”, os vizinhos a escutaram berrando madrugada adentro, até que no dia seguinte soube da atrocidade feita com o corpo do “seu honesto e bravo homem”.

           Após os teresinenses descobrirem que aquele corpo, que parece ter sido flagelado pelo demônio, era de um pai de família, a situação mudou. Não era mais a morte de alguém, era a morte de um homem! O bastião e o pilar fundamental de uma família!

            Teresina parou. No Dirceu, as pessoas vasculhavam o próprio quintal, procurando a outra parte do corpo. O mesmo aconteceu na Santa Maria da Codipi. Na ponte do Poty Velho, ribeirinhos nadavam até o mais profundo do rio buscando pela outra parte. De repente, a temporada da caça ao tesouro se iniciou.

            Durante a noite, de tanta gente procurando em tantos lugares diferentes, acharam a outra metade do teresinense morto no lugar mais improvável possível: Timon. Sim, a parte superior estava entre as árvores e a areia do rio.

            Sete da noite, o horário em que o pai de família começa a voltar para casa, foi também quando o IML, por fim, juntou as duas partes do corpo, tão separado. E foi também, o momento em que o pano da realidade, que por si só é tão fino e ignorável, foi novamente, devorado. Sebastiao Carlos Almeida Lima, de 41 anos, morador do bairro Mocambinho, que trabalha no IML, contou para mim, em primeira mão, o que aconteceu de fato dentro do quarto frio do instituto.

            Sebastião levou para a sala de autópsia dois sacos plásticos, colocou-os sobre a mesa e deles retirou as duas partes do corpo desconjuntado. Com dois dedos abriu as pálpebras do morto, e para o seu susto, os olhos se reviraram. Sebastião pulou para trás! “Mas o que é isso, meu senhor Jesus Cristo! Me proteja, meu senhor!”, teria gritado na hora.

            Sebastião Carlos Almeida Lima transcreveu para mim o seguinte diálogo, em sua total honestidade de alguém que há anos trabalha com corpos mortos. O morto teria dito: “Desculpe o inconveniente, é que eu estava com a minha amante. Eu tinha que dizer algo pra minha esposa”. Sebastião se lembra que ainda perguntou, sem ter recobrado direito a noção da realidade: “O que cê vai dizer pra sua esposa?” e o morto-vivo teria respondido: “Vou dizer que morri e tô voltando hoje”. Diante disso, Sebastião andou para trás, escondeu-se atrás de um balcão, a se mijar todinho nas calças. Olhava de relance para a mesa e viu o homem se costurar com um tubo de linha que tirou do bolso, juntando a parte de baixo do corpo na parte de cima. A agulha entrava e saia pela pele, costurou as tripas, conectou as partes do estomago, e ia cantarolando enquanto unia as ligações dos rins. Depois dos órgãos, foi costurando a pele com os cuidados de uma exímia costureira e, minutos depois, estava novo em folha! Com os pés pulantes que só ele tinha!  

            O morto saiu do IML, pegou um ônibus direto para casa e explicou o porquê da demora a voltar: pois havia morrido. A esposa que socava paredes com ódio, viu-se então diminuída, sem razão, refutada pelo acontecimento. A infidelidade estava ali como rato morto no telhado, só que com isso, o que podia fazer era apenas ignorar. Como desconfiar de um homem que a amava tanto, mas tanto, que mesmo morto e repartido ao meio, tinha vontade de voltar para casa. Ele tinha recebido o aval do Diabo. A mulher, ressentida, desculpou o homem e em um enlace pútrido, a viva beijou o morto, em um beijo que selava seu amor pela eternidade de uma mentira.

Paulo César Costa

 

            Mandei esse texto para o editor do jornal. Se eu nasci para ser jornalista, já morri, e agora escrevo de dentro para fora e não o contrário.  São quatro e meia da manhã e estou sem sono algum. Fechei meu notebook e, cansado, coloquei a cabeça sobre a mesa. Nesse momento, encontro-me tão atordoado com esse texto que, de alguma forma, sinto ter rompido algo no universo ao conseguir tornar a narrativa do homem morto tão verossimilhante.

Ilustração: Igor Ganga

 

 

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