Resenha da obra “Lendas de Pedro II” (1999) de Ernâni Getirana, e entrevista com o autor

Revisão: Joana Tainá

“Hoje, mais do que em qualquer outra época da História da humanidade, faz-se necessário saber quem somos sob pena de, em assim não agindo, sermos esmagados (…) e corrermos o risco de perdermos nossa identidade cultural, nossa riqueza maior.” [Trecho do À guisa (ou ao guisado) da Primeira Edição]

O livro nos traz nove histórias e nove ilustrações maravilhosas, que são um deleite por si só. Lendas de Pedro II é curto, tem menos de 50 páginas (uma tristeza, podia ter umas 300), sem muitas digressões, vai direto ao cerne de cada lenda/causo.

Se você parar para ouvir (ou ler, nesse caso) o que Ernâni Getirana tem a falar sobre Pedro II vai se encantar com as histórias que vivem pela cidade, e vai conhecer um pouco mais do povo que anda pelas ruas, toma banho nos riachos da região e descansa à sombra das árvores.

Os livros em ciclos

Desde a primeira publicação o livro foi reimpresso, ganhou novas edições, ilustrações, encurtou o título (antes se chamava Lendas da cidade de Pedro II), circulou por feiras literárias, bibliotecas, palestras, virou grafite em muro, ganhou vida em palcos amadores, fez os olhos de várias pessoas brilharem a cada página virada.

Ao longo desses mais de vinte anos, o livro do Getirana atravessou esses vários ciclos, inclusive o (talvez) mais importante de todos: essas histórias acompanharam uma criança leitora até ela se tornar um adulto escrevendo livros que vão chegar às escolas e alcançar outras crianças.

Ernâni Getirana: Desde cedo [eu] era acostumado a ler e escrever redações na escola. A leitura, além de fazê-la em casa, dos 10 aos 14 anos todas as noites, de segunda a segunda, passava das 18 às 21 horas na biblioteca municipal da cidade de Pedro II.

Geleia Total: Como foi o processo de escrita do Lendas de Pedro II? E como foi a recepção do livro ao longo desses anos todos?

EG: O processo de escrita do ‘Lendas’ teve início quando após uma aula, percebi que boa parte dos alunos não conheciam palavras ‘antigas’, já em ‘desuso’ e, em consequência também não conheciam histórias antigas da cidade.

“Ao chegar em casa fui ao computador e o livro começou a nascer. Foi escrito em uma semana, depois levei mais uns dois meses corrigindo e esperando os desenhos (para ilustrar o livro) que havia encomendado a um amigo.”

GT: Uma vez você falou que trabalhar com causos e lendas faz a pessoa que lê se conectar com mais facilidade ao texto porque ela se lembra do tempo de infância. Acontece o mesmo com quem escreve?

EG: Escritores e leitores, em se tratando de causos, bebem nas mesmas fontes. Costumo dizer que não sou o autor das lendas. Eu ouvi algumas delas quando criança. Adulto, pesquisei, cataloguei, escrevi e publiquei as lendas. Mas digo que todos podem reproduzi-las, desde que citada a fonte.

As nove lendas

  1. A Sereia do Pirapora
  2. Os chora-chora do Tamboril
  3. A Mulher de Branco
  4. O Montador de Cachorro pro Inferno
  5. O Cospe-cospe
  6. A Comedora de Miolo de Criança
  7. O Cavaleiro Solitário
  8. A Sucuruju da Barragem
  9. Cama de Baleia

Algumas histórias são um pouco resumidas, no entanto, eu entendo que a proposta da obra é essa mesmo, a intenção é bem mais decompilar as lendas – servir de referência – e apresentá-las a um novo público, do que romancear em cima das situações e personagens.

O que mais me encantou na leitura foi que o livro é um passeio por Pedro II. Nos atravessamos com a cultura da cidade.Por essas páginas caminhamos pelas ruas e bairros, pelo mercado velho, pulamos muros, mergulhamos nos riachos e nas “águas turvas da barragem”.

Também viajamos através do tempo e pela história de Pedro II. Conhecemos lendas que se surgiram “por volta do fim do império”, ou na época em que acabava de chegar à cidade energia elétrica vinda da barragem Boa Esperança, ou ainda descansamos à sombra de um pé de tamboril, que hoje a árvore já não está mais no local.

A cultura popular não se prende por limites de espaço, tempo ou idade. O livro do Ernâni Getirana é uma prova disso. Saímos da leitura com uma certeza: Pedro II ainda tem muitas histórias para viver e nos contar.

“Uma certa madrugada de lua cheia, um morador das bandas do Pirapora acordou e como ouvisse uma canção plangente resolveu levantar-se à procura de sua fonte.

Qual não foi sua surpresa quando ao aproximar-se do talhado magistralmente banhado pela luz do luar avistou lá embaixo, no riachinho Pirapora, a silhueta de uma sereia cantante com um pássaro emplumado pousado em uma de suas mãos, tudo envolto por uma cintilante campânula de luz.” [Trecho do conto A Sereia do Pirapora]

Se você não cuida do que é seu…

Só para dar um pouco de contexto, este próximo tema surgiu a partir de um questionamento de Getirana acerca de uma coletânea com lendas do Piauí que não trouxe nenhuma lenda de Pedro II (nem mesmo a Sereia do Pirapora, uma das mais fortes na região), apesar da importância cultural da cidade para o estado, em especial depois do Festival de Inverno (criado em 2003).

GT: Pode falar um pouco sobre a Tenda da Cruviana e seu trabalho com a livraria, editora e espaço cultural em Pedro II?

EG: A Tenda da Cruviana foi uma ideia que tive de colocar um stand na praça pública durante as edições do Festival de Inverno. Ao escolher o nome “cruviana”, quis homenagear a existência desse fenômeno climático muito comum por aqui durante as madrugadas frias. A editora física veio na sequência, uma vez que comecei a ser solicitado sobre aquisição de livros por muita gente fora do período do Festival de Inverno. Hoje temos a livraria cruviana e o espaço cultural Toca das Lendas.

GT: Em seu canal no YouTube, há um vídeo com o título “Se vc não cuida do que é seu…” onde levanta uma discussão interessante sobre Pedro II ter as “pontes quebras” com o eixo cultural de Teresina, e como o Festival de Inverno faz da cidade apenas um “palco” para o que é pensado fora. Poderia falar um pouco mais sobre isso?

EG: Sim, posso. Participei da equipe que criou o Festival [de Inverno] e desde o início chamei a atenção dos demais para a necessidade da inserção dos nativos no evento. Ao mesmo tempo, deveríamos ter o cuidado de diversificar o evento, criando eventos artísticos diversos: teatro, dança, pintura, etc. Isso chegou a acontecer nas primeiras edições, mas depois a coisa degringolou.

“Minha tese é de que como Pedro II possui 99% dos professores com curso superior, isso poderia gerar um ‘laboratório de pensar o município e sua gente’ full time. E o festival serviria de vitrine para a exibição da produção cultural, teórico-artístico desses professores, juntando a isso a presença dos artistas de todos os naipes.”

Autor e obra

Ernâni Getirana nasceu em Pedro II e tem 63 anos. Fez Letras, Pedagogia e Mestrado em Políticas Públicas na UFPI, pós graduação em educação pela UFRJ. Possui cerca de 10 livros (dentre eles, “O Festival de Inverno de Pedro II, Lendas de Pedro II, Estripulias de Rosa Doida e Debaixo da Figueira do Meu Avô), além de haver participado de inúmeras coletâneas. Foi editor do Jornaleco (jornal cultural na década de 2000).

Lecionou na UEPI e Faculdade Santo Agostinho, é professor aposentado do Estado do Piauí. É membro das academias de letras APLA e ALVAL, além de participar do grupo Coletivo P2. Escreve às quintas para a coluna ‘Cultura’ do site News Piauí. É proprietário da Livraria Cruviana e do espaço cultural Toca das Lendas, na cidade de Pedro II.

“Durante a pandemia escrevi e lancei no SALIPI [2021] o livro ‘Debaixo da Figueira do Meu Avô’. Também participei da coletânea ‘Distopia 2020’ (lançado no SALIPI também). Além disso, escrevi durante a pandemia outros cinco livros, que pretendo lançar logo, logo. Dentre eles o livro de poesia ‘Cegante’ iniciado há mais de vinte anos. Além disso, quero centrar força na consolidação da Biblioteca Popular Casa da Mãe Ana.” [Trecho da entrevista dada à Geleia Total]

Referências

À guisa (ou ao guisado) da Primeira Edição (aqui)

Lendas de Pedro II, Ernâni Getirana (aqui)

Vídeo no YouTube: “Se vc não cuida do que é seu…” (aqui)

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