Revisão: Paulo Narley
Opa, este texto é uma continuação. Você pode ler a parte 1 aqui.
Rio abaixo, rio arriba
Fadado a passar metade do ano no Poti, durante o período do inverno, e os outros seis meses de estiagem no Parnaíba, Crispim, na forma de Cabeça de Cuia, não poderia se afastar muito do local de origem da lenda: a cidade de Teresina, onde os dois rios se encontram.
Isso é o que conta uma das histórias mais recorrentes a respeito da maldição dele. Porém, na virada para o século XX, ele já estava longe do lugar onde supostamente nasceu e deveria ficar ali restrito, esperando.
De 1905, temos uma menção curta no relato de viagem de Joaquim Nogueira Paranaguá (que nasceu em Corrente-PI). Na verdade, trata-se de uma nota de rodapé: “É crença, entre os ribeirinhos do Parnaíba, ser nas anfractuosidades deste poço a morada do legendário Cabeça-de-Cuia”. Que poço é esse? Acharam o Cabeça de Cuia dentro de um daqueles poços de tirar água com um balde e corda? Não, aqui é um “poço de rio”, um ponto de grande profundidade. A nota de rodapé se refere a este trecho do livro de quando o autor navegava pelo Parnaíba:
(…) descia uma barca com carregamento de borracha, peles e outras mercadorias, quando, ao chegar ao remanso do Poço do Surubim, as águas a engoliram. A tripulação safou-se; mas a barca, com o fundo para cima e os mastros para baixo surgiu somente ao sair da estreita garganta.
Do Rio de Janeiro ao Piauí pelo interior do país – Joaquim Nogueira Paranaguá.
Era uma época em que explodiam pedras, alargavam as margens e etc., para torná-lo mais navegável e evitar acidentes como esse em trechos mais estreitos. O Poço do Surubim era antes da foz do rio Gurgueia, a pouco mais de 200 km de Teresina em linha reta. Devido a tanto barco e canoa afundando na região, falam que ali só podia morar o “legendário Cabeça de Cuia”.
De 1959, encontramos um texto de Vitor Gonçalves Neto (Teresina-PI) que saiu em um jornal de Porto Alegre, no qual o autor registra uma variante pouco conhecida da lenda que um balseiro de Floriano o contou:
Disse-me ele que nas povoações ribeirinhas (vilas e cidades) guarda-se um costume de muitos tempos. O de lavar-se as crianças logo que nascem. Nas águas do rio. Aquele cheiro novo atrai o “Cabeça de Cuia”. Escondido próximo fica ouvindo a “parteira” que pronuncia o nome do recém-nascido enquanto dura o banho. Como se fosse um batismo. Então se for José ou Maria estará perdido. O monstro o abocanha.
Até aqui a gente subiu o rio acompanhando a lenda, rumo ao Sudoeste do Piauí; agora, vamos descer por essas águas e nos tacar para o Norte, onde ela também foi vista. Rio abaixo, rio arriba. O autor continua:
(…) Ainda há pouco fui procurado pelo intelectual conterrâneo Da Costa Ribeiro que me informou de que a assombração fôra notada ultimamente no rio Piracuruca. Novidade. Essa corrente não é tributária direta de Parnaíba. Joga suas águas no Longá [e o Longá, por sua vez, deságua no Parnaíba].
Tradição, regionalismo, folclore – Folclore Piauiense: O “Cabeça de Cuia” – Jornal do Dia, Porto Alegre, n. 103, p. 17-23, 1º fev. 1959 – Vitor Gonçalves Neto.
Nem à mesma corrente de água a lenda se prende mais. Ela já se espalhou pelos afluentes do Poti e do Parnaíba, fazendo suas aparições ao longo de quase todo o estado.
As ruas, feito rio, cortam a cidade
Outra coisa que o século XX trouxe e que impactou muito a lenda foi o abastecimento de água por encanamentos. Até então, a principal forma era através de poços ou no lombo de um jumento que descia até o rio e voltava carregado.
Isso proporcionou que a cidade de Teresina crescesse para mais longe da beira de seus rios. Com isso, a lenda teve que sair de dentro das águas e ganhar as ruas na busca por vítimas para quebrar a maldição.
Ainda no texto de Vitor Gonçalves Neto, vemos um pouco da relação dos ribeirinhos com o rio, com a contação de histórias, com os inúmeros encantados que habitam as águas do Parnaíba – são “mães d’água, surubins gigantes, almas penadas, vapores encantados”.
Raros no entanto os que afirmam já ter visto o “Cabeça de Cuia”. Monstro lendário daquelas águas. Assombração. Ultimamente só mesmo o velho Damásio. O canoeiro mais antigo do Parnaíba. (…) Pois foi esse preto velho quem me contou. No último setembro. A coroa se estendia no meio da corrente. A noite ia longe. E sua voz chiava. De manso como passos naquelas areias.
(…)
E me fez toda a narrativa do ocorrido. De como vencera o monstro. Da pancada com o remo nos seus dedos. Do vento gemendo. Isso e mais aquilo. Uma noite inteira de assombração.
Esse mesmo modus operandi pode ser percebido em outras histórias sobre lenda: o Cabeça de Cuia se escondendo dentro do rio, tentando afundar o barco e puxar a pessoa para dentro da água para, no fim, afogá-la. No entanto, aqui ele se deu foi mal, levou uma pisa de remo, teve que fugir e se esconder no meio da noite. Agora, se é ou não história de pescador…
O relato continua:
A estória começa na Vila Velha do Poti. O pescador voltara à casa carregando o cesto vazio. Nenhum peixe. Nada. Fora uma noite perdida. Mais um dia de fome pra passar. Por isso é que regressa enfurecido. Feio. A ponto de maltratar a velha mãe. Pois o que ela lhe guardara fora somente um corredor seco. Uma canela de boi. Aloucado avança. Bate com o osso em sua cabeça. Para o tutano sair. O sangue escorre no lugar. Tingindo os cabelos brancos. Maldição! Ajoelhada no terreiro joga a praga. Justamente na primeira badalada do meio dia. O resultado não se fez esperar. O moço botou uma cuia na cabeça. Procurando abafar a dor que sentia. E alucinado saiu correndo pelas ruas do Poti Velho. Mergulhou no rio Poti. Passou para o Parnaíba. Ficou fazendo assombração.
A imagem do jovem pescador consumido pela culpa e se afogando na torrente de pensamentos que o arrasta para o fundo, tentando abafar tudo isso com uma simples cuia sobre a cabeça, enquanto corre pelas ruas da vila e se taca no rio, é muito interessante. Se levarmos em conta que a água pode ser um símbolo para o inconsciente, é como se ele mergulhasse em si mesmo como punição.
O autor também traz uma versão diferente de como ele ataca suas vítimas, apesar de ainda ser algo ligado ao tempo e às cheias. À medida que a cidade se afasta do Parnaíba e do Poti, a lenda se adapta e vai atrás, faz das ruas um rio.
Passa a metade do ano dentro d’água. Virando embarcações. Comendo gente. Cumprindo a sina. Os outros 6 meses passa em terra. Incarnado em alguém (será por isso que Teresina dispõe periodicamente de alguns maníacos? O certo é que uns desaparecem depois de certo tempo. Ou conseguem curar-se. Outros ficam e a mania pega para sempre. (…)
Tradição, regionalismo, folclore – Folclore Piauiense: O “Cabeça de Cuia” – Jornal do Dia, Porto Alegre, n. 103, p. 17-23, 1º fev. 1959 – Vitor Gonçalves Neto.
Possuir pessoas para andar em meio à sociedade, numa ânsia de voltar à normalidade não era uma característica vista nos primeiros registros da lenda. No entanto, é algo que vai aparecer depois, em outros lugares, como na obra Folclore brasileiro: Piauí (1977), de Noé Mendes: “Dizem, ainda, que ele costuma se incorporar em algum louco que perambula pelas ruas de Teresina”.
Apesar de todo esse esforço do Cabeça de Cuia, ele permanece à margem, invisibilizado, uma vez que encarna pessoas em situação de rua, que, devido ao comportamento “estranho”, são tidas como neuroatípicas (“loucos”, “maníacos”), e, ainda por conta dessa versão da lenda, podiam ser tidas como possuídas por um “monstro” ou por um “demônio”, meio que estigmatizando o já estigmatizado.
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Referências
Do Rio de Janeiro ao Piauí pelo interior do país – Joaquim Nogueira Paranaguá (1855-1926) (aqui)
Tradição, regionalismo, folclore – Folclore Piauiense: O “Cabeça de Cuia” – Jornal do Dia, Porto Alegre, n. 103, p. 17-23, 1º fev. 1959– Vitor Gonçalves Neto (aqui)
Folclore brasileiro: Piauí (1977) – Noé Mendes de Oliveira; pode ler mais sobre o autor (aqui)