Resenha do conto “O cheiro de café pela manhã” (2022), e entrevista com o autor, Hermes de Sousa Veras

Em destaque, há um tablet com a capa da Revista Escambanáutica na tela, é a edição de junho de 2022, a capa mostra uma casa de dois andares como se fosse assombrada, escadaria levando à porta principal, árvores mortas ao redor e morcegos voando no telhado. Nesta edição, há o conto de Hermes de Sousa Veras.

 

Revisão: Ayrton de Souza

Pai, mãe, filhos, uma verdadeira família “tradicional” brasileira. Uma rotina igual a tantas outras. No entanto, por um pequeno descuido, precisam lidar com bichos antropomorfos e uma herança monstruosa.

“O cheiro de café pela manhã” foi primeiramente publicado na edição de junho de 2022 da Revista Escambanáutica, uma revista trimestral de literatura fantástica brasileira, latino-americana e decolonial.

A revista é reconhecida por trazer textos que buscam ressignificar a literatura pulp e toda a estética que a acompanha, passando por cima das simplificações e dos reducionismos, valorizando histórias que vão além de temas e olhares já exaustivamente abordados, que é o que ocorre no conto do Hermes.

Um autor em movimento

Geleia Total: Você já esteve no Ceará, Rio Grande do Sul, Pará e agora está “lareando por Teresina”, como é produzir arte estando em movimento? Como esses lugares mexeram com a tua escrita, tanto em relação ao conteúdo quanto ao processo criativo?

Hermes de Sousa Veras: Gosto mesmo do movimento, de conhecer outras cidades e realidades, enfim, viver esse país no que ele tem de melhor, o que faz com que conheça o que tenha de perverso também.

“Mas posso responder que no Ceará, onde nasci, fui criado e formado. As influências mais duradouras são de lá, acredito que permanentes. Foi em Fortaleza que aprendi a gostar de ler, a conhecer mais sobre o universo da escrita e a experimentá-la. Em Fortaleza participei de um coletivo literário, o Grupo Eufonia de Literatura. O que me lembra que minha relação com a literatura sempre foi coletiva.

“O Pará mudou tudo. Fui para o Norte para estudar, fazer o meu mestrado em antropologia, que é com as religiões de matriz africana na Amazônia. No Pará, procurei ler os clássicos, autorias consagradas, tinha que partir de algum lugar. Depois descobri que outras pessoas que eu conhecia escreviam, caso das escritoras Josiane Martins e a Monique Malcher. Hoje conheço muitas pessoas do meio literário paraense que me inspiram. Além das amigas citadas, o Edyr Augusto, que tive o prazer de conhecer na força da vontade.

“Mas apesar dessas presenças, a minha experiência literária no Pará sempre foi mais solitária, porque o meu foco era o mestrado e a pesquisa. Apenas com a minha participação no Sesc ConVida em 2020 isso começa a mudar, que é quando conheço a Cleo Oliveira, que trabalha no setor de literatura do Sesc de Belém. Ela tem sido muito generosa com o que escrevo e me ajudado a participar mais, oficialmente, da literatura paraense.

“Quanto ao Piauí, a minha relação é tão recente que ainda não sei te dizer. Mas eu conhecia pouco do estado, apesar de já ser leitor do quilombola e poeta Antonio Bispo. Talvez na crônica seja possível perceber melhor como esses estados por onde passei me influenciaram. Acredito que todos, de alguma maneira, me afetaram. E bom, antes de vir para cá, já tinha lido você (Auryo Jotha) e a Lícia Mayra. Aposto bastante em vocês.”

O horror: vira-bicho e relações familiares

No conto “O cheiro de café pela manhã”, Hermes trabalha com um horror não exclusivamente sobrenatural, apesar de ter um vira-bicho (ou um lobisomem, como preferirem), o maior dos medos aqui vem de algo presente na vida de (quase) todo mundo: as relações familiares e o fim da infância.

“fazer esse tipo de horror, que ensaio em O cheiro do café pela manhã, é traduzir, expressar de alguma maneira o horror nosso de cada dia. Os monstros não são fictícios, são reais. Quando transformados em elementos bizarros e ininteligíveis, espantam, por um lado, mas por outro são um chamado para refletirmos sobre a nossa própria vida.” (Trecho da entrevista dada por Hermes à Geleia Total)

O conto trabalha muito bem o crescimento, as mudanças da infância para a fase adulta, as incertezas que isso acarreta, o que nós deixamos para trás e das responsabilidades que jogam sobre nossos ombros. Às vezes é como se escutássemos um eco da nossa voz falando: Quando chegar minha vez, não vou cometer esses erros. Será mesmo?

Uma das coisas que mais me impactaram nesse horror no cotidiano, foi a cena em que o menino se veste com os “pedaços” do pai-bicho, assumindo (querendo ou não) o lugar dele. “Em breve trabalhará”. Essa parte da história é maravilhosa e assustadora tanto pelo que acontece como por tudo o que simbolicamente ela acarreta de discussões.

“As palavras saíram assim, vestidas de normalidade. Algo nele, entretanto, desconheço se um olhar, a maneira como curvava o espinhaço para falar conosco, as mãos pressionando os joelhos, espantava. Algumas vezes a mana e eu sentíamos uma catinga de porco. Não tenho certeza se um suíno vivo cheira assim, mas a associamos ao animal e ao pai. Parecia que ele não estava confortável em ter que dividir o seu queijo, de ter que falar com seus filhos.” (Trecho do conto)

Gente virando bicho, com focinho de porco e garras não são coisas distantes, muito pelo contrário, é algo que tá bem aí virando a esquina, vem direto de causos populares de “lobisomem”, o que enriquece ainda mais o conto. Se quiser conhecer um pouco mais sobre esses relatos, aqui na Geleia Total temos um texto chamado de Lobisomens e Vira-bichos no Piauí (aqui).

Agora, uma das poucas coisas que me incomodaram – não naquele “bom sentido” que dá para se esperar em uma obra do gênero de terror – foi um acontecimento que teria um enorme impacto na trama, masque se mostrou sem grandes consequências. Foi como se o autor tivesse voltado atrás com o que fez porque só precisava apresentar um elemento importante para avançar com a história, além disso, depois desse não-acontecimento a mãe e a irmã ficam meio que apagadas até o final da história.

GT: Poeta, “vampirão cronista e antropólogo”, há algum corte que separa todas essas tuas facetas? Em que o Hermes-antropólogo influencia o escritor de ficção?

HSV: Sempre quis ser um performer, mas sempre me faltou o talento pra sê-lo. Um músico, ator, repentista, cordelista, enfim, um sujeito que faz da palavra o seu ofício, mas que não abre mão da sua apresentação enquanto corpo. O gosto pelo RPG ajudou nesse sentido, pude viver muitas vidas.

“Essa sua pergunta me revela que tornei a escrita o meu lugar de performance, de ser muitas pessoas, viver e criar outras vidas a partir da minha. É o que se faz no palco. Então o que liga o antropólogo ao ficcionista e ao poeta é o próprio ofício da escrita. Não separo, são diferentes em apresentação, mas partem da mesma matéria.”

O menino

GT: Na tua newsletter, tu trouxe que foi “um menino tímido e retraído”, “recluso em casa”, “ficava bem preso ao Fantástico mundo de Hermes”. Foi desse menino de onde tu partiu para criar esse conto? Como é escrever (sobre) crianças? Fale um pouco das dificuldades e reencontros escrevendo personagens assim.

HSV: Parto do menino que fui, que não fui. Também das crianças que observo. Da minha família, de pessoas mais próximas. Não sou a pessoa mais preparada do mundo para falar sobre infância em um sentido pedagógico e paterno, mas me comovem e me entristecem crianças que não podem brincar. Que não possuem afeto e sofrem violências terríveis, que jamais poderiam ter sofrido.

“Eu não tenho muitos personagens crianças. Mas a infância tem sido um lugar de experimentação: no meu livro de poesia, Formas Veladas, acionei bastante um eu-lírico infantil, assim como nas crônicas de um mensageiro, tento pensar sobre o que é isso de já ter sido criança. Agora, não gosto de escrever nem de ler uma infância romantizada.

“Sei que Verena Cavalcante tem um livro de horror todo com personagens infantis, que sou louco para ler. Ainda tenho aqui comigo a influência do José J. Veiga e suas personagens infantis envoltas em situações fantásticas.”

Autor e obra

Hermes de Sousa Veras é antropólogo e escritor. Atualmente é professor assistente-temporário na Universidade Estadual do Piauí. Escreve a newsletter de crônicas um mensageiro e é autor de O sacerdote e o aprendiz: antropologia de um terreiro amazônico (2021, Letramento, não-ficção) e Formas Veladas (2021, Escaleras, poesia).

“Estou escrevendo, a passos de mosquito, um livro de contos com crianças envolvidas em situações fantásticas. Até agora tenho dois desses contos escritos. Por coincidência, estão publicados. “A boca faminta e alheia”, que foi vencedor do Primeiro Concurso Literário Pintura das Palavra, em 2020. E “O cheiro de café pela manhã”, publicado na Escambanáutica no ano passado (2022).

Só descobri que estava com esse projeto em mente depois que escrevi e publiquei esses dois contos, verificando minhas anotações-ideias para contos futuros.

Além disso, tem a newsletter de crônicas um mensageiro. A proposta é escrever 120 crônicas semanais. Depois disso, pararei para selecionar cerca de 40 textos e escreverei mais alguns. E pronto, terei um livro de crônicas. Para fechar a trinca das minhas manias na escrita, estou escrevendo a passos de mariposa o Cem Telhas, que pretende reunir cem poemas sobre vigília, telhados, gatos e insônia.” (Trecho da entrevista dada por Hermes à Geleia Total)

Newsletter “um mensageiro” de Hermes  (aqui)

Link para o site da Revista Escambanáutica (aqui)

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