Revisão: Joana Tainá
Aviso de conteúdo: violência contra a mulher.
O Cabeça de Cuia
Monstro lendário, Crispim, assassino da própria mãe, pescador amaldiçoado a não sair mais de dentro das águas e fadado a vagar junto dos peixes. Tantas coisas.
São muitos os mistérios que vêm se banhar nas margens do Parnaíba, de onde só conseguimos imaginar o que nos espreita do fundo do rio. O Cabeça de Cuia talvez seja a mais famosa das lendas que habitam essas águas.
Ele já assombrava a região muito antes de Teresina surgir em 1852. Dizem que toda a história de Crispim começou na vila velha do Poty, uma vila de pescadores perto de onde os rios (Parnaíba e Poty) se encontram.
Os primeiros registros da lenda
Em 1884, quando o Nordeste ainda não tinha sido inventado, Alfredo de Freitas escreveu sobre o que as pessoas encontravam ao irem banhar de rio:
(…) vai traiçoeiramente se aproximando, pouco a pouco, do indivíduo; se este porém não se evadir em tempo, será apanhado por ele, e submergido incontinente. É representado por uma figura animada, que tem a cabeça à semelhança de uma cuia. Ninguém, porém, ainda conseguiu ver-lhe o corpo.
Lendas e supertições do Norte do Brasil – João Alfredo de Freitas
A descrição de Crispim como Cabeça de Cuia aparece aqui apenas como sendo uma grande cuia boiando no rio. Se haveria ou não um corpo escondido dentro dessas águas barrentas o Alfredo de Freitas não quis ficar muito tempo para descobrir.
Porém, no mesmo ano de 1884 (depois reeditado na década de 1970), Vale Cabral trouxe uma descrição física um pouco mais completa para lenda: “É alto, magro, de grande cabelo que lhe cai pela testa e, quando nada, o sacode, faz as suas excursões na enchente do rio e poucas vezes durante a seca”. Agora, o Cabeça de Cuia já ganha corpo e inclusive um modus operandi: ele se aproveita das cheias do rio para levar suas vítimas embora, e se esconde durante as secas.
Em seguida, Cabral mostra vários elementos da maldição de Crispim que se mantiveram até hoje e outros que foram esquecidos ou adaptados para lidar com a passagem do tempo, até porque são mais de 100 anos:
Come de 7 em 7 anos uma moça de nome Maria; às vezes, porém, também devora meninos quando nadam no rio, e por isso as mães proíbem que seus filhos aí se banhem. Há homens que deixam de se lavar no rio, sobretudo nas enchentes, com medo de serem seguros pelo tal sujeito encantado. Originou-se de um rapaz que, não obedecendo à sua mãe, maltratando-a e abandonando sua família, foi pela mãe amaldiçoado e condenado a viver durante 49 anos nas águas do Parnaíba. Depois que ele comer as 7 Marias tornará ao estado natural, desencantando-se. Conta-se que sua mãe existirá enquanto ele viver nas águas do rio.
Achegas ao estudo do Folclore Brasileiro – Alfredo do Vale Cabral (1978)
Aqui temos algo curioso: Crispim – o Cabeça de Cuia – também ataca homens, crianças ou adultos. Causando um medo que chega a ponto de algumas pessoas evitarem o rio. Imagine como deveria ser isso em uma Teresina sem o abastecimento de água de hoje, dependendo de forma direta do Poti e do Parnaíba. Como se evita o contato com a lenda? Foram 49 anos de terror.
Mas… e o que foi que aconteceu quando esses 49 anos passaram e a lenda continuou viva? O que fazer então? Simples, esse limite de tempo foi aos poucos sumindo, até porque 7 x 7 (49) é um jeito de falar que a maldição duraria por muito, muito tempo… e de certa forma não está errado, dizem que a maldição não foi quebrada até hoje.
A parte da mãe também se destaca. Na versão mais conhecida da lenda, Crispim a mata com um pedaço de osso, e é isso que o faz desaguar na maldição. Nessa do Vale Cabral, o rapaz é amaldiçoado por abandonar a família, apesar dos maus tratos não há a “famosa” morte da mãe que, nesse caso, se encanta junto do filho. Será que é por causa dela que ainda hoje o Cabeça de Cuia não conseguiu nenhuma das sete Marias? Ela interferiria?
Em 1891, Leonidas de Sá publicou um texto sobre a lenda. “Há muitos velhos ouvi contar a história” de uma pequena família no “lugarejo Poti Velho”, essa família se sustentava devido ao filho, se apoiava nele. Aqui Crispim consegue pescar, traz comida para casa e há comida o esperando:
Aconteceu que uma vez o rapaz voltou da pescaria impressionado e macambúzio. Atirou a um canto o seu arpão, a sua tarrafa, os seus anzóis e uma cambada de curimatãs, e, como fosse hora de jantar, sentou-se na esteira, no meio de sua família e começou a comer.
A refeição versava sobre carne de vaca. Encontrando um enorme corredor [o osso da canela do boi], entendeu que devia batê-lo para tirar o tutano; mas como na ocasião não tivesse um lugar apropriado, procurou fazê-lo na cabeça de sua velha mãe. Esta então, enfurecida, foi para o terreiro do quintal e rogou-lhe uma praga, amaldiçoando-o também.
Era meio dia, e o sino da igrejita repicava apressadamente. A velha, de joelhos na areia ardente do terreiro, batia nos peitos e pedia ao Santíssimo Sacramento a punição do amaldiçoado. Dizem que o remorso apoderou-se do coração do filho desnaturado, que correu doidamente para a foz do rio Poty e aí lançou-se e desapareceu nas águas. Desde então, nas águas do Poty e nas águas do Parnaíba, anda errante, com uma enorme cabeleira de lodo assentada sobre uma cabeça de cuia, donde lhe vem o nome.
Aparece nas grandes cheias, e é mais terrível nas noites de sexta-feira. Só se quebrará o seu encanto depois que ele houver comido sete Marias Virgens.
Contribuições para o Folklorebazileiro – in Revista Mensal da Sociedade União Piauhyense (PE) – 1891 – Leonidas de Sá
(o português desse trecho foi atualizado por mim para melhor compreensão)
Ao contrário de outras versões, nessa a família não parece passar fome. Há boa pesca. Comida na mesa. Mesmo assim, a história se repete, o filho agride a mãe e a maldição toma espaço. No entanto, essa versão é quase uma piada, ela tira a culpa das mãos de Crispim, como se ele tivesse feito sem querer, ele bateu o osso na cabeça da mãe porque não encontrou “um lugar [mais] apropriado”.
Mas… e as Marias? Ele conseguiu alguma? Nas palavras de Leonidas de Sá: “[o Cabeça de Cuia] já se acha muito envelhecido e descontente por não ter filado uma só Maria”.
Honra teu pai e tua mãe
Uma coisa que o tempo não pareceu mexer até agora foi a necessidade que o Cabeça de Cuia tem de devorar ou “apenas” matar (ou mesmo de um abusar sexualmente – a depender da interpretação) sete mulheres de nome Maria para quebrar a maldição. E assim, o Cabeça de Cuia se aproveita das cheias do rio para levar suas vítimas embora.
Qual a lógica disso? Se comete sete crimes para sanar um? Ou em outras palavras, se mata sete mulheres para se expiar o pecado de ter desrespeitado a mãe? É isso? Mas… se formos seguir essa lógica onde fica o mandamento de “Não matarás”?
Não… matarás… E mulher conta?
Ok. Eu já pedi desculpa. Isso não vai se repetir. Não precisa envolver ninguém nisso, até porque só nós dois podemos entender como funciona a nosso relacionamento. Só quero evitar que as coisas fiquem estranhas entre nós. Na verdade, não aconteceu nada. E você não é totalmente inocente. Eu estou certo ou estou certo?
*
Em 2020, durante a pandemia, pelo menos três mulheres morriam por dia vítimas de feminicídio no Brasil. No Piauí, a média de registros de boletins de ocorrência relacionados à violência contra a mulher é de 508 por mês (de 2019 a 2022).
Parece que é sempre enchente.
Referências
Lendas e supertições do Norte do Brasil – João Alfredo de Freitas (2018)
Achegas ao estudo do Folclore Brasileiro – Alfredo do Vale Cabral (1978)
Contribuições para o Folklorebazileiro (1891) – in Revista Mensal da Sociedade União Piauhyense (PE), Leonidas de Sá (aqui)
Cabeça de cuia – Lendas piauienses (Geleia Total)
Na pandemia, três mulheres foram vítimas de feminicídios por dia – (Amazônia Real)
Mulheres negras de 20 a 34 anos são principais vítimas de feminicídio no PI; estado registrou 219 casos nos últimos 8 anos – (G1 – Piauí)
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