Revisão: Joana Tainá
“Manuel Alexandre morreu, Eita Píula!
Mas parece que ele queria
Viajar ainda não.”
Uma comédia de costumes (com traição, casamentos, fofocas) misturada com assombrações, tesouros enterrados, palhaçadas e o visual exuberante das quadrilhas juninas. Isso tudo dá uma cara própria às histórias, ok, (eu sei) só essas coisas não dão para resumir o que são esses dois filmes de Eita Píula!, mas já dá para ter uma ideia do que esperar.
Um pouco mais de cada filme
Eita Píula (2017) – A história já começa com a morte de Manuel Alexandre e o enterro dele, que quem estava lá jura de pé junto que o corpo se mexeu se recusando a ir para debaixo da terra. A história desse susto foi se espalhando e ganha uma nova forma: a assombração de um Cachorro Preto começa a aparecer à meia-noite pelas bandas de onde deixaram o corpo – “e quem me disse isso não tá mentindo”.
Kalusca, a viúva de Manuel Alexandre, fica de olho no namoro da filha – Kandoca – com Tonho. Trata os dois na rédea curta, para a menina não ficar mal falada, enquanto a própria viúva se engraça às escondidas por Jaiminho na hora que a filha vai dormir. Até aí tudo bem… Acontece que o Cachorro Preto passa a correr atrás desses dois homens, e a presepada tá feita.
Eita Píula 2 (2019) – Aqui Kalusca está pronta para casar com Jaiminho, enquanto Kandoca vai tomar satisfação com Tonho sobre uma mensagem que a chamaram de “côrna” e que ele não sai do forró do Frejo. Tem beatas, putas, fofocas, padre novo na cidade, casamento, assombração e um meio mundo de gente atrás de um tesouro enterrado. E o Manuel Alexandre ainda tá presente na história.
Um mundo teatral
Uma das coisas que mais se destacam nos dois Eita Píula! é o figurino. No meio do sertão piauiense, as personagens se destacam no cenário, é como se estivessem montadas para se apresentar num teatro, num circo, ou – o que é mais certo – numa festa junina.
O contraste entre o realismo e o lúdico é maravilhoso. São lantejoulas, cores, brilhos, babados, enfim, são roupas típicas de quadrilhas de São João, e isso não é um “fazem lembrar” ou um “parecem ser”, de fato são. O filme conseguiu o apoio de grupos de quadrilha junina mesmo, o que torna tudo ainda mais único.
Quando comecei a pensar no Eita Píula! eu já queria algo que remetesse ao mundo teatral, no tocante à interpretação e indumentária. Alguns dos atores do filme são também quadrilheiros, e eu acompanhava os trabalhos das quadrilhas, sempre encantado com aquelas roupas e adereços que usavam.
Foi aí que pensei em casar as coisas pra encontrar o tom necessário que pensava pro filme, potencializando o folclore que abordamos neles.
(Trecho da entrevista dada por Flávio Guedes à Geleia Total)
Para montar o elenco do segundo filme o diretor fez uma chamada pública, era preciso muita gente para realizar a continuação do Eita Píula! O resultado foi uma troca enriquecedora de experiências.
Na chamada pro Eita Piula! recebi material de muita gente boa, e o principal: com muita vontade de realizar o trabalho, de me ajudar a contar essas lendas.
E isso é o que nos move, e move qualquer trabalho, o genuíno interesse em fazer. E como era uma equipe grande, o trabalho era redobrado, principalmente nas cenas que envolviam muitos atores, atrizes e figurantes.
(Trecho da entrevista dada por Flávio Guedes à Geleia Total)
Não tenho o número exato contando com figurantes, no entanto, só para terem uma ideia o corte final ficou com cerca de 30 atores em cena com fala. Além dos desafios de dirigir tantas pessoas, ainda teve o fato de que as gravações se deram no interior do Piauí em pleno B-R-Ó-Bró, imagine só, “com o Sol a pino, (…) e o elenco usando aquele figurino!”.
Do cachorro preto à botija de ouro
O primeiro filme nos apresenta à lenda do Cachorro Preto, da comunidade Forte, a qual o diretor entrou em contato enquanto trabalhava no Banco do Brasil e como oficineiro de Teatro, no município de Inhuma.
Foi nas aulas de uma das turmas, cujos alunos eram em sua maioria da comunidade Forte que surgiu a ideia de montarmos uma peça na Lenda do Cachorro Preto, originária daquele povoado.
Fui, então, passar um fim de semana no Forte, conhecer a pedra onde tudo aconteceu e ouvir relatos de populares que conheceram o Manoel Alexandre. E muitos deles juram que já presenciaram assombrações que atribuem ao Cachorro Preto.
Daí nasceu a peça, que montamos em 2008 e foi um sucesso local, e quase 10 anos depois transformei no Média Metragem. O texto é o mesmo do teatro, e não um roteiro específico pro cinema, por isso também queria imprimir esse espectro teatral no filme.
(Trecho da entrevista dada por Flávio Guedes à Geleia Total)
O segundo filme aproveita uma das lendas que permeiam o imaginário do povo de norte a sul do Brasil: as botijas de ouro. As personagens crescem os olhos para pôr as mãos nesse tesouro enterrado, o que gera várias cenas cômicas e as maiores reviravoltas de Eita Piúla 2.
Segundo os causos contados pelo meu avô, os ricos de antigamente guardavam joias, dinheiro, e muitas peças em ouro escondidas dentro de botijas, que geralmente enterravam pra evitar furtos.
Quando essas pessoas morriam sem revelar onde estavam escondidas suas riquezas, sua alma não descansava e aparecia pros vivos ou em sonhos, indicando onde estavam enterradas as botijas, pra que fossem resgatadas e a alma pudesse enfim descansar.
(Trecho da entrevista dada por Flávio Guedes à Geleia Total)
Se você estiver procurando por mais histórias sobre botijas de ouro fizemos uma resenha do livro de ficção fantástica de A. F. Soaress que trata justamente disso (aqui).
“os causos contados pelo meu avô”
Antes dos créditos subirem no final de Eita Píula 2, o diretor faz uma homenagem ao avô – Luís Pereira da Silva – “de quem ouvia atento as estórias sobre Botija de Ouro”, e que havia falecido apenas um mês antes do lançamento do filme. Na tela, junto do “em memória” aparece uma imagem dos dois sorrindo para marcar a lembrança e a importância de toda uma vida.
Meu avô era um contador de causos e acreditava piamente em todos eles. Quando faleceu, no ano do lançamento do filme (2019), com Alzheimer, ele vivia falando que precisava ir na chapada “tal”, na roça “tal”, desenterrar uma botija, que ele ia ficar rico.
(Trecho da entrevista dada por Flávio Guedes à Geleia Total)
É dessa forma que o fantástico se fez presente no dia a dia de Flávio Guedes. Porque é desde o tempo de criança que as lendas da região vinham se sentar junto ao menino no chão ou num tamborete para ouvir os causos que o avô contava. O encanto nos olhos e o modo mágico de ver o mundo é algo notável nos filmes dele, e assisti-los é sentir um quentinho no coração por se reconhecer ali na tela.
Esses causos e lendas que sempre ouvi na minha infância, me inspiram e influenciam até hoje, e esse misticismo acaba surgindo, de forma às vezes sutil, outras evidente, no meu trabalho.
(Trecho da entrevista dada por Flávio Guedes à Geleia Total)
Falando em lendas, o diretor também trabalhou com a história do Cabeça de Cuia no filme O Pescador e o Rio, que também temos texto na Geleia falando sobre ele (aqui).
Trailer do filme Eita Píula!
Você pode assistir aos dois filmes pelo YouTube:
Eita Píula! – Filme (aqui)
Eita Píula! 2 – O caso da botija de ouro (aqui)
Você conhece alguma lenda ou tem alguma história dessas para contar? Quer sugerir pautas para a Geleia Total? Manda a sua sugestão para: redacao.geleiatotal@gmail.com