Um quase prefácio de Chapada do Corisco de Alisson Carvalho

Foto montagem do livro Chapada do Corisco de autoria de Alisson Carvalho. A capa é branca, traz o título centralizado e com uma fonte corroída em algumas letras. No canto de baixo, à esquerda da capa há uma canoa em meio à névoa. O livro está sobre uma prateleira de madeira, logo atrás dele há um disco de madeira escura e um retângulo de madeira mais clara. Do lado esquerdo da imagem há um jarro também de madeira com uma planta de galhos finos e folhas verdes escuras.

Revisão: Paulo Narley

“Consegue escutar? Os passos ficam mais fortes, os ruídos aumentam, tu chamaste a atenção da mata. Sombras famintas te querem.”

A canoa para na margem do rio. No entanto, ela vem leve, a pesca não foi boa. Dessa vez, não há peixe para o almoço, mas há muitas histórias. Assombrações correm pela mata e essas águas estão cheias de encantos. E pelas ruas de Teresina? É justamente por elas que Alisson Carvalho nos guia em meio a fantasmas, lobisomens e suas gentes.

Desde o título, a obra é carregada de referências. A região de Teresina, a capital do Piauí, também é conhecida como Chapada do Corisco devido às fortes trovoadas e constantes raios que caem durante as tempestades.

O livro é construído em capítulos e percorre por Teresina ao longo das décadas. Séculos e quilômetros não importam tanto assim quando as lendas nos atravessam sem nem percebermos. O Cabeça de Cuia, por exemplo, está associado à origem de Teresina, inaugurada em 1852, mas não se limita a um passado distante ou fica retido à beira de um rio, ele caminha pelas avenidas e becos, mergulha no Parnaíba, no Poti, em seus afluentes e em nós.

Em Chapada, as lendas se apropriam de vez do cenário, a cidade é delas, o rio, a mata da beira do rio. Iaras, Pés-de-garrafas… A Num-se-pode, a Porca do dente de ouro. Este é o maior trunfo na escrita de Alisson: os ambientes cheios de perigos e deslumbramentos.

As lendas da região são testemunhas e agentes na vida de um jovem pescador, veem a lenda de Crispim no momento de seu renascimento como Cabeça de Cuia. Amaldiçoado por ter matado a mãe com um pedaço de osso, ele é preso em um ciclo de violência, no qual, para se libertar, deveria matar mais e mais mulheres.

Crispim entra em conflito com o que ele esperava de si e com o que os outros esperam dele. Com o passar do tempo e ao se transformar em lenda, ele ainda terá que carregar novas expectativas: um monstro deve ser um monstro; para remediar um crime, ele deve cometer mais crimes.

“Como poderia viver humano com o crime de sete mulheres inocentes? Que sociedade era aquela que só permitiria o perdão com a concretização de outros crimes, seria uma forma de afirmar que a condição de monstruosidade era uma condição construída da relação com o outro. Um outro que inocenta ou condena os seus demônios?”

Aqui, o Cabeça de Cuia é um monstro diluído, as ações dele permeiam muitas realidades todos os dias, é um monstro de um problema que assola gerações, um monstro invisível que nos acompanha no silêncio e na violência, porque as coisas “precisam” (para quem?) continuar presas nas mesmas margens.

A preocupação com questões sociais é um ponto central na obra. Desigualdade, preconceito, pessoas invisibilizadas (se ninguém vê, elas não existem, não incomodam), a normalização da violência sofrida por determinados corpos.

Alisson é formado em Ciências Sociais, mestrando em Antropologia, é artista visual, ator de teatro, poeta, contista, romancista. Em Chapada, você se deparará com o entrelaçamento de todas essas artes e áreas do conhecimento.

A paixão pelas imagens se reflete nos ambientes construídos em Chapada, nas idas ao rio debaixo de chuva, numa passagem no Cânion do Poti. Ao longo do livro, também nos deparamos com quase que fotografias do cotidiano.

Do teatro, notamos os diálogos. Uma torrente emocional transborda pelas páginas, o psicológico das personagens é verborrágico, aquilo que preenche o indivíduo está lá, à espera de quem lê o toque, o sinta como uma correnteza que nos leva.

Por fim, só digo mais uma coisa: tá bonito pra chover, e se prepare porque na Chapada do Corisco o céu se ilumina de relâmpagos e pelo chão as lendas correm soltas em meio ao povo. E, junto delas, nos lembramos de onde estamos e quem somos como sociedade. Boa leitura.

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