Semana passada, saindo do consultório, depois de uma tarde de análise com meus pacientes, me deparo com uma imagem no fim da rua, uma sereia de Lu Rebordosa (@lurebordosa), pintada na parede. Ela me encara em potência, movimento e beleza. Ali em redor, a artevista pintou flores e cajus. Uma sereia rodeada de flores numa parede numa rua deserta, num bairro de classe média alta. Isso faz muita coisa passar pela minha cabeça. Me atravessa de múltiplas formas e me faz ser afeto de muitas outras maneiras que não cabem nesse texto – e nem tenho as palavras.
Lembro, ali, que conheci a Lu quando ainda eu nem era artista (não pintava ao modus de hoje; acho que nem desenhava, na real). Já assumindo aqui o risco da confissão de minha intimidade, lembro que a arte da Lu, suas formas e, principalmente, as texturas que ela imprimia na tela, no papel, no muro, me fizeram querer fazer o que ela faz. Eita, que a arte é um poder incrível. Tudo isso aconteceu por meio das redes sociais.
As sereias tem um valor primordial para mim e Lu me reconectou com minha infância, ao tempo em que eu amava desenhar sereias e peixes. Algo que foi reprimido, obviamente, porque menininhos que desenhavam sereias tinham algum problema, na cabeça de alguns.
Então, ali diante daquela parede, aliás: diante daquela sereia, sou remetido a uma viagem, à minha própria jornada de me libertar de alguns laços impostos desde minha primeira socialização até os estudos que faço sobre as sereias nas culturas africanas da costa ocidental, por exemplo. A sereia na parede me suspende, me leva a uma outra dimensão de tempo.
Assim, chego à conclusão: a arte da Lu me educa. Sim, educa. Não no sentido escolarizado e colonizador da coisa, mas na dimensão do afeto, da reflexão, do desabrochar, do me inquietar, do transcender. Esse é um jeito resistente de ser, né? Aprendi com ela e com sua arte.
E são nessas confissões que a Lu me “linka” com Donna Haraway e o seu famigerado texto Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial (de 1988), quando diz que o mundo não é passivo, mas, ao contrário: ele é um agente ativo que produz, inclusive corpos.
A sereia na parede em meio às flores é o mundo me provocando depois de uma tarde corrida, depois de uma semana em que fui sequestrado pelo tempo cronológico que só produz ansiedade e autocobrança. É o mundo me provocando depois de uma infância extremamente complexa, do ponto de vista sócio emocional A sereia da Lu, que em meu olhar é minha sereia da infância, dos meus rabiscos infantis é uma agência do mundo, por meio dessa artevista incrível, me convidando a uma revisão desse próprio mundo, incluso eu mesmo. É um convite a olhar esse mundo com todas as suas contradições, violências, possibilidades, lutas, flores, sangue e lágrimas. É um lembrete de que fluí, de que resisti e de que continuo a mudar, a crescer, a desabrochar… até ser poeira de estrelas no fundo do mar.
A sereia na parede codifica tudo isso: minha infância reprimida, a vontade de voar, a inspiração para ser artista, a constante produção de quem sou, o lembrete das minhas mortes, o achamento de mim mesmo. Um chamamento à aprendizagem.
A Lu, de certa forma, e principalmente por meio das texturas, me ensina a conversar com o mundo, com suas ambivalências e estripulias.
A sereia na parede me lembra que passaram-se somente 30 segundos desde que comecei essas divagações, ali parado na rua. Viro à direita até o próximo semáforo. Atrás de mim a sereia da Lu, a minha sereia, a sereia de quem se apropriar com o olhar, mesmo que em mero meio minuto. Um núcleo gerador de muitas coisas, estampada no muro da cidade, que entardece dourada.
Próxima quarta olharei para ela novamente.
Axé.