Sequestrado(a) de seu continente, onde em sua liberdade exercia sua criatividade, sua inventividade, seu trabalho, o(a) negro(a) africano(a) se viu, num salto repentino, trabalhando sem limites para povos que ele(a) não conhecia, mas que, a partir do rapto colonial, passou a conhecer, ter contato com a perversidade de uma forma existencial baseada em saque cultural e submissão do(a) outro(a), aquela existência estranha aos seus hábitos, que era (é?) típica do sujeito europeu.
O trabalho sem limites, antes sustentado pelo sistema escravista, com seu tráfico de povos que a subjetividade branca não entendia como humanos, se transubstanciou – pareceu deixar de ser sem que de fato deixasse, para utilizar uma linguagem filosófica – em trabalho subalterno. Como pôs em evidência o sociólogo Clovis Moura, nos trabalhos de ganho, aqueles que os burgueses brasileiros e os “importados” trabalhadores europeus, no pós-abolição da escravatura legal, não eram expostos a executar. Labores como carga e descarga de barcos, plantações, pedreiras e afins.
Do final do século XIX para o início do século XX o que mudou foi o tipo de manifestação classista: o senhor de escravos transubstanciado em patrão, o escravo transubstanciado em trabalhador assalariado. No final do século XX, porém, mais agudamente no início do século XXI, a qualidade de assalariado dá espaço para a de precarizado(a).
Perceba, na linha histórica traçada que é feita aqui, desde a autonomia do(a) africano(a) em seu continente mãe até o limbo que são as américas, a base de sustentação da produção de bens e serviços para a manutenção, do básico ao mais sofisticado, da vida ocidental tem o protagonismo, o maior engajamento, as mãos, pés e intelecto do colonizado e da colonizada. Não só do(a) negro(a) africano(a), mas dos(as) chamados(as) negros(as) da terra também, os e as indígenas. Povos que, no extremo oposto da dinâmica colonial de sujeição e exploração do humano de outras culturas e do meio ambiente, cultivaram e cultivam (literal e filosoficamente) – aqueles(as) que ainda podem resistir em suas práticas tradicionais – a terra, em compasso com o tempo natural e com seus pares étnicos.
Em contraponto a esse tempo natural, que compreendemos hoje pelas estações do ano e todas as suas particularidades, está o tempo do colonizador: o fabril; o mercadológico. Uma cronologia que se inicia com as invasões europeias de meados do século XVI, se intensifica com as revoluções industriais ocorridas em Europa, entre os séculos XVII e XIX, e se expande, pela globalização, para os demais cantos da Terra, condicionando as pessoas ao descompasso não só com os limites do céu, da terra, da água, do fogo (as últimas tragédias “naturais” no Brasil são prova cabal disto), mas também com seu próprio corpo.
E tal cronologia, como já está conotado aqui, corresponde à gana assassina e suicida do ser ocidental por acumulação daquilo que não precisa para sua existência plena, mas que se trata de símbolo do que este sujeito reivindica em seu relativamente curto espaço de tempo em vida: poder. A mesma gana por poder que levou o europeu a navegar pelos oceanos e entender como imediatamente suas as terras e as formas de vivências não-europeias, está presente na atual funcionalidade capitalista, cada vez mais intensificada com a tão louvada tecnologia que, por ser concentrada, tal qual os demais recursos necessários à vida, nas mãos de um minúsculo grupo, servem hoje à maximização da exploração dos(as) negros(as), maioria na classe trabalhadora.
O desemprego estrutural, tão bem descrito pela teoria marxista como exército de contingência do capital, por lançar – como projeto de sociedade, não como falha no funcionalismo capitalista – trabalhadores e trabalhadoras fora do mercado de trabalho, é mais um dos aspectos das novas estratégias coloniais (neocolonialismo) que, sustentadas pela mediação do mundo digital com seus sofisticados computadores, lança os antes escravizados(as), depois trabalhadores(as) assalariados(as) nos trabalhos mais rebaixados da sociedade de classes, que hoje se configuram como os uberizados, termo utilizado pelo intelectual Ricardo Antunes, ao conjecturar as ocupações como entregadores(as) de aplicativos, motoristas de aplicativos, PROFESSORES(AS) POR APLICATIVOS.
Mas qual o problema com a “facilitação” do ganho por essas ferramentas? Os problemas começam com a radicalização da mais-valia, mecanismo de extração de lucro a partir da exploração da classe trabalhadora, que limita a maior parte do faturado com o trabalho, nas mãos dos patrões – em sua maioria descendência dos senhores dos engenhos. Porque, das jornadas de trabalho de oito horas por dia, conquistadas a duras penas pela própria classe trabalhadora na dialética entre patrão e empregado desde a Revolução Industrial até hoje, passamos para indefinidas horas, geralmente longas. Isto conjugado à baixa remuneração que tais aplicativos pagam aos trabalhadores e às trabalhadoras, devido à ausência de legislação trabalhista, profundamente desmantelada pelos governos neoliberais (a serviço dos donos do mercado) de Temer e Bolsonaro, que medeie a relação burguês-proletário.
Não está apenas insinuado, até aqui denotamos o lugar que as sociedades de classes – escravista, de trabalho assalariado ou de trabalho uberizado – relegam aos não-brancos: os mais inferiores possíveis. Por razões materiais e históricas, viabilizadas pelo domínio político (poder) e econômico (meios de produção da propriedade privada), as classes subalternadas são compostas, em suas diversas faces, por negros e negras.