Revisão: Joana Tainá
Existe algo místico na ideia de uma repartição pública. Invisíveis aos olhos, estão as colunas de concreto que são o conjunto cervical, o sustento de um prédio e as suas ramificações. Nada mais que um conjunto planejado de tijolos, cimento e madeira, arquitetado como um corpo humano, onde cada lugarzinho tem os seus porquês. Em Karma City Police, a rigidez das paredes e a burocracia de documentos são modulados pela fluidez da ética e moral daqueles que permeiam o espaço vivo do departamento de polícia. É uma experiência que borbulha o jogador com as inconsistências do ser humano, dentro daquilo de mais rígido da esfera social: a polícia.
Karma City Police é um jogo que me confunde e, em muitos aspectos, é isso que ele espera de quem joga.
O jogador é inserido na cidade de Karma City através da vivência do mais novo telefonista da delegacia, e seu trabalho não é menos importante apenas por ser “o telefonista”. Somos, logo de início, apresentados à não apenas uma simples mecânica, mas também uma responsabilidade: a de salvar vidas.
O turno começa e recebemos as mais diversas ligações que, de acordo com o seu conteúdo, com as perguntas que o jogador pode fazer para averiguar melhor o caso e até mesmo o sentimento daquele que liga para a delegacia apontando algum problema, podem ser resolvidas enviando um determinado número de policiais, à paisana ou armados, e até mesmo em velozes viaturas para ocasiões de urgências. Depois, o turno finaliza. É hora de ir até a sala do Delegado para saber o resultado de suas ações. Estão todos mortos.
Mas calma, isso foi apenas o resultado das minhas ações. Em alguns dos casos que foram apresentados para mim nos meus primeiros turnos de trabalho, eu consegui a proeza de condenar a morte tanto aqueles que ligavam quanto aqueles delegados que iam prestar socorro. Claro, além de ter confiado em um trote, ao invés das pessoas com problemas reais. São essas inconstâncias que o jogador tem que lidar em Karma City Police: as minhas mãos sustentam a responsabilidade ou ela vai escapar pelas frestas dos meus dedos e respingar no chão como o sangue de civis e policiais inocentes? É um sentimento complexo, mas que, tão como uma repartição pública se ramifica, ela também escoe pelas suas salas, ambientes, e nas pessoas que dão vida a elas.
Saindo do turno de ligações, temos toda uma Delegacia para conhecer. Conhecemos as pessoas e, então, as suas tramas. Cada história no espaço de trabalho se interliga à sua maneira: conhecemos companheiros de trabalho invejosos e chatos, um Delegado subserviente à um Prefeito que, evidenciando suas atitudes, parece ter pouca ou nenhuma noção de como ser um bom gestor público. Os cozinheiros que se dedicam na criação de comidas deliciosas e que o jogador, com frequência, vai carregar de um lado a outro para alguém, aqueles que trabalham nas celas e na garagem, enfim, ao conhecer cada um deles conhece-se também a Delegacia. E conhecendo-a, por fim, sabe-se que não vai nada bem.
A gestão da Delegacia passa por maus bocados já que, com certa frequência, um certo telefonista tem condenado policiais à morte, e a reputação do lugar piora na opinião da população a cada acúmulo de erro cometido em turnos de trabalho e também devido aos índices de criminalidade. E, além disso, pouco dinheiro está entrando, o que torna cada vez mais difícil manter o lugar. É de esperar, então, que o Delegado responsável por manter a segurança da cidade precise fazer algum agrado ao Prefeito, visando algum tipo de verba. Entretanto, qual o limite disso?
Guiados por uma música ambiente que se mistura bem com as idas e vindas do jogador pela Delegacia e design de pixel-art em 2D que remete aos antigos jogos de RPGMaker, Karma City Police é um jogo sobre limites e, por isso mesmo, trabalha as inconsistências e as confusões de se lidar com a vida humana.
E, talvez por acaso ou por gosto do desenvolvedor, calhou de existir uma outra mecânica para resolução de conflitos, que é a disputa de Pinball: quase sempre, quando o jogador vai se aprofundando na trama, ele é posto em um jogo de Pinball em que precisa vencer para dar continuidade. É um conceito simples, é apenas Pinball. Mas também é angustiante. É complicado. Às vezes, não acaba sendo como planejado. É incerto. Pode se tornar problemático. Se trata da mecanização das inconsistências que o jogo tão bem debate em seu texto, muitas vezes bem humorado e muitas vezes filosófico.
Karma City Police poderia ser classificado como um jogo “José Saramago instalou RPGMaker em seu computador”. O autor português já brincou com os tramites burocráticos e as inconsistências da realidade em obras como “Todos os Nomes”, e a comparação não é exagerada considerando a mistura bem feita de debates éticos e diálogos humorados, como uma garantia de que, apesar de conversar sobre a vida e a morte e termos o sangue de pessoas mortas em nossas mãos, em algum momento, uma esperança pode ser sinalizada.
Karma City Police desagua nesse fluxo de novas obras e lançamentos que, indo além da margem da competência, entregam experiências únicas.
Se trata de mais um grande trabalho sólido do cenário de jogos independentes brasileiros. Karma City Police explica a vida que desliza nas paredes de concreto de uma Delegacia, e além daquilo que paira no ar e é invisível aos olhos. E, também não se pode esquecer: tem o imenso mérito de dar profundidade para algumas partidas de Pinball.
Jogo disponível em: Computadores (Steam)
Cópia cedida pelo desenvolvedor.