Roda da Fortuna

Revisão: Auryo Jotha

Caminhando pela rua, paro e me escondo num guarda-sol gigante e verde que faz sombra para os transeuntes na calçada. Centenário. A massa de gente que se mistura com o calor invisível. Pessoas vão e vem tantas vezes que o início e o fim da meada já se perdeu, caso sequer alguma vez tenha existido. A rotina de viver em um organismo além do próprio. Absorver um pouco de tudo e de todos ao ponto de sempre se desconhecer. A pulsação do mundo nas rotações por minuto dos pneus dos ônibus. Borbulhar num caldeirão de gente e calor. São tantas imagens que veem à mente sobre um mundo que se escondeu nas sombras. Nem eu e nem Teresina somos mais os mesmos.

Sou de um bairro da Zona Norte que tinha, até certo tempo, a peculiaridade de ser populado pelas mesmas famílias desde o seu surgimento, que foi há muitos anos. Hoje, a população dele é majoritariamente de idosos. Casas sempre iguais. Caminhos mantidos por décadas. A árvore genealógica do menino que cresceu e foi preso aos 12 anos por furto de uma farmácia se enlaça comigo. Tudo aqui foi igual por tanto tempo que se desconhece algo desconhecido um do outro. Então pessoas nasceram de outras e a geração da minha mãe se formou para, em seguida, surgir a minha.

Cresci conhecendo as pessoas mais velhas do bairro, e a suas relações com meus pais e os pais deles também. Hoje, algumas dessas pessoas já morreram. A peculiaridade que eu havia encontrado no bairro se desfazia. Junto disso, casas surgiram, quitinetes eram povoadas e novos estabelecimentos comerciais demarcavam espaços contra antigos comércios. O Tempo desgastou a sustentação de um conjunto de vidas que apenas seguia. E, como um ciclo, a morte parecia um novo começo. Seria o isso o que chamam de Futuro?

O girar interminável da Roda da Fortuna. Dormir é relaxar da tontura do ciclo.  A vida é como um carro de cartoon, com as rodas triangulares, girando, girando e girando, deixando feridas no caminho. Não era o Futuro.

Nas primeiras semanas de Março de 2020 ocorreu de ser uma das últimas vezes que eu iria ao shopping naquele ano. Nesse mês, eu e a cidade como um todo nos recolheríamos em casa para nos proteger da COVID-19. Desde então, para mim e para muita gente, o mundo mudou. Paredes brancas. A repetição da rotina sem a queimação na pele que nos deixava despertados. Meu vento das montanhas era um ventilador de 6 pás. O que, em parte, aliviava, era saber que essa agonia não era apenas minha: família e amigos também sofriam com o isolamento.

Com o passar dos meses, os limites do isolamento foram se desenrolando e, até agora, quando escrevo, o mundo não voltou pro eixo. Teresina não voltou pro eixo. A cidade virou um carro derrapando numa autoestrada de madrugada, na chuva. E, de repente, eu me vi dentro do veículo.

Eu que sempre me vi em um caldeirão de gente, virei o vazio de um tanque de fundo vasto. O xilofone de pedrinhas da Universidade. As pegadas. O Sol atravessando as folhagens e descansando em mim e nos meus amigos. A urgência e o marasmo, juntos. Fazer parte de algo maior e que reverbera e que faz chorar e que faz sorrir. O meu vento das montanhas era sorriso, a alegria e saber que vivia. Agora, eu coleciono fotos do Sol como um faminto corre atrás de migalhas.

A pandemia ainda não acabou, mas foi amenizada. Estou vacinado com três doses de vacina, minha família também, e isso nos garante maior conforto para sair de casa e menos medo de ter casos graves da doença que, julgado pelo histórico de saúde das pessoas daqui, morreríamos todos. Apesar disso, eu não creio que consiga sair de casa e ir muito longe.

De repente, percebi que a cidade em que vivo é alheia a minha realidade. Os ônibus são hoje piores do que eram antes. Em época de chuva, muito mais pessoas estão sofrendo com as enchentes. Desemprego. Péssima gestão. Nossa cidade nos expulsa quando não permite que vivámos. É o oxigênio desviando do pulmão.

E nesses contrapontos ilógicos, com Teresina se rachando por dentro, vejo o que acontece quando a malha do Tempo não se deita sobre o corpo de alguém. A corrosão fica explícita. Eu mudei porque tudo ao meu redor mudou, entretanto, de algum modo continua aqui, como dois corpos ocupando o mesmo lugar. Apagaram o fervor que borbulhava a gente. Somos antigas bolhas de sabão evaporando na mão de uma criança.

Nessa cidade, o ciclo que nos faz seguir em frente foi suspenso. Estamos mudando, mas, na verdade, é como se estivéssemos murchando. E, enquanto ainda estou preso dentro de casa, tenho que achar dentro dela a cidade que me falta.

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