Um canto para os esquecidos

Nasci cru, cresci sem identidade, performei durante muitos anos neutro, completamente despido de características marcantes. Provavelmente ignorei os pais dos colegas me chamando de negrinho, porém os ponteiros possuem uma força assombrosa de desvelar tudo que ficou encoberto e numa dessas andanças alguém questionou porque um dos primos era diferente.

Olhei pela primeira vez o espelho e entendi o que significava aquela pergunta.

Eu não tinha os olhos ou a pele clara como a maioria da família e somente quando me dei conta daquilo foi que percebi a sutil diferença no tratamento. Não bastou meus irmãos e eu entrarmos na universidade, diferentemente dos primos e afins, pois para aquelas vozes éramos inferiores, não possuíamos capacidade intelectual, portanto sempre surgiam novos obstáculos que deveríamos vencer.

Essa é uma realidade bem particular, pois no Brasil temos um índice de 25,2% de jovens entre 18 a 24 anos cursando ou concluído ensino superior. Se pensarmos nesses dados da Síntese de Indicadores Sociais do IBGE (2019) podemos perceber ainda que essa estatística muda completamente quando afunilamos esse universo e selecionamos os jovens negros, que representam apenas 18,3%. E, segundo o IBGE, aproximadamente metade da população se autodeclara negra, ou seja, a desigualdade ataca em todos os espaços inclusive dificultando a democratização do ensino.

O plano de fundo das minhas leituras se fincava nas composições de Tchaikovski e que interessante ler dados e mapas da desigualdade ao som do compositor que – pra mim – se tornou marcante por causa da sua biografia, afinal até onde tinha lido ele foi um compositor gay cuja parte da sua história fora censurada ao longo do tempo e pelos seus conterrâneos. Enfim, se já gostava dele antes imagina depois de tantas proibições.

O resto da playlist não era diferente, tinha um Vivaldi ali, um Beethoven acolá, o Edvard Grieg dum lado, etc. Meu gosto musical estava totalmente neutro, igualzinho a mim antes de me aperceber no mundo. Eis que conheço Possidônio Queiroz (1904-1996), um compositor piauiense que me deixou em estado de profunda alegria, pois eu tinha diante das vibrações do meu corpo uma melodia composta por um compositor negro e piauiense.

Algo em mim mudou, ao escutar as valsas do compositor eu me sentia transportado para outra época, me sentia diferente. Eu tenho uma mania de, sempre que posso, imaginar histórias sobre as variações de cada peça que aprecio, pois para mim uma composição instrumental sempre se tratou de histórias concretas. Com Possidónio eu senti Oeiras com todas aquelas histórias impressas na arquitetura e detalhes da cidade, imaginei cenas dos livros que li e das artes que tive o prazer de conhecer, etc.

Assim começo essa reflexão que tem duas partes…

Eu sou um amante de pesquisas, de todos os tipos, gosto mesmo de ler para compreender como anda alguma questão, mas não quero apreender tais dados para usar em algo específico, só leio por ler, sem que isso se transforme em algum projeto e não me julguem por isso. Enfim, enquanto lia sobre a desigualdade no país e, concomitantemente, entrevistava Lucas Coimbra, deparei-me com dados empíricos de tudo o que estava expresso nas pesquisas. Então leio as letras de “A cor da dor” e paro diante da tela com lágrimas que não sei precisar de onde vinham e para onde iam, eu vi a dor escrita, narrada, contada, pintada diante dos meus olhos e automaticamente desliguei o som, pois não fazia mais sentido, não aquele som europeu, não aquelas vibrações.

Tudo pode nos tensionar, nos tocar, mas quando o estímulo encontra com a nossa vivência e se entrelaça com as nossas histórias aquilo ganha um novo sentido.

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