O natal chegou e eu queria falar sobre ele. Não numa perspectiva cristã. Mas numa, talvez, etimológica, simbólica e pagã, porque o natal (apesar de sequestrado pela cristandade) é pagão, graças às deusas. Peço licença, então.
Todos os anos, ele – natal – chega com todas as influências das antigas religiões romanas e nórdicas, que celebravam o solstício de inverno – o dia mais curto e a noite mais longa do ano. Há algo que sempre remete ao nascimento, ao giro cosmogônico de todes nós todo dia, todo ano. Algo que, consciente ou inconscientemente, reporta às mortes simbólicas tão essenciais ao processo dinâmico do cotidiano.
O natal é sobre momentos cruciais de morte cedendo vez ao renascimento. É sobre sair refeito. É sobre a aventura heróica pela qual passamos em cada ciclo.
Falar sobre os processos simbólicos de renascimento-morte, me remete a uma palavra que aprendi com meu avô materno, filho de uma indígena parteira, minha bisavó. A palavra é cuité.
Esse é um termo tupi (kuia e’tê) que significa “cuia verdadeira”.
E olha a cuia aqui de novo, em meu segundo texto para a Geleia Total. Acho isso um máximo, pois vejo que podemos aprender muito com ela, numa perspectiva não-cristã de natalício.
A botânica afirma que a cuia é um fruto seco de diferentes espécies de árvores da família bignoniaceae, estando presente no dia-a-dia, desde o chimarrão do gaúcho até os utensílios do terreiro de mãe Francisca.
Ela é um importante objeto para trabalho doméstico, para rituais religiosos, para música e para a arte, o que ressalta sua ancestralidade e a relação harmoniosa com a natureza, num mundo que cada vez mais devasta as matas e florestas, principalmente nesse Brasil retrógrado de 2021.
A cuia é um elo perdido, que precisa ser resgatado.
E que irônico nosso principal monstro mitológico ter uma cabeça de cuia! Isso tem implicações muito interessantes para a coletividade teresinense e além dela.
Indígenas e africanos utilizam a cuia de diversas formas, o que chegou até nosso cotidiano. Lembro da capoeira e do berimbau e seu som mesmérico e metálico perpassado por atabaques, num batismo que acontecia numa praça perto de casa.
Para os povos de algumas vertentes do Candomblé, o universo é uma grande cuia, e a cabeça que carregamos também o é, como espelho do cosmo. Um pássaro de penas brancas habita o interior da cabeça, o que simboliza nossa mente.
Em África, o ori, a cabeça, é representado por uma cuia, que tem em seu interior búzios brancos, que significam aquele pássaro branco que Olodumaré (mãe-pai Criadora) colocou dentro de nós. Eis uma psicologia antiga! Pois nos deparamos aqui com aspectos de cuidado para com o nosso ego (no sentido de núcleo de nossa personalidade).
E a cuité de vovô e a cabeça de Crispim me lembram um conselho de Preto Velho, importante para esses tempos de natal, depois de um ano tão difícil: uma cabeça boa é a verdadeira saúde.
E, nessas divagações, não posso me eximir de citar a poética e a imagética da cantora piauiense Monise Borges que, para mim, é uma das artistas que mais recheia suas produções com muitos elementos simbólicos salutares de se ler e entender nos dias de hoje.
Nesse ano, a compositora e intérprete lançou o clipe da música ‘Vai Passar‘, dirigido e roteirizado por Ícaro Uther (dá um google e veja essa obra-prima), que remete a muitos aspectos de natal, no seu desenho mais original – enquanto primeira celebração sazonal comemorada pelas populações neolíticas do norte da Europa – de morte-nascimento, de iniciação nos mistérios da própria existência.
O clipe é de uma delicadeza poética e cirúrgica, pois é – literalmente – uma janela de possibilidades para se pensar em si. É um confronto e um convite (pessoal e coletivo).
Tudo ali é muito simbólico e humano – como já disse anteriormente e não canso de repetir-, pois Monise trata da ambivalência da vida, de finitude e recomeço, de maneira muito bela (essa é a sua mágica, sua bruxaria).
É retratado também o pôr do sol, que nos lembra dos ocasos da vida, nos mostra as tantas mortes – transformações – pelas quais passamos, afinal existir é nascer e morrer muitas vezes. Por isso é importante comemorar esses solstícios existenciais. Todo dia nos pomos num eterno oeste de quem fomos, para amanhecermos outras pessoas.
Ecoo aqui o questionamento de Clyde W. Ford, no seu célebre livro O Herói com Rosto Africano, que coloca: não é que também nós precisamos morrer sucessivamente para renascer? Precisamos nos deixar cair nas garras da morte. Como diz a máxima iorubana: nem Exu venceu a morte (ikú).
De repente, em outra parte do clipe, Monise para diante da água, depois se deixa submergir, afundar-se. Ela funde-se com a própria paisagem, o que é muito significativo e transgressor numa sociedade cada vez mais individualista.
Para quem não sabe, a água é símbolo – antigo – de nutrição, de maternagem. Também representa a impermanência da vida. Ainda, nossa parte mais sombria, escondida, obscura, profunda; pois a água esconde mistérios desde o Nilo até o Poty e o Parnaíba..
Quem aqui não lembra de Heráclito, parafraseado por Lulu Santos, na música ‘Como uma Onda’, que falava que ninguém banhava duas vezes no mesmo rio? E assim nem mesmo a Monise ressurge, desse batismo profano e ancestral, a mesma pessoa, naquelas cenas. Ela agora, ali, tem natureza em si. É mata com a mata, ave com as aves que nadam no céu pelo fim do dia. Isso é morte simbólica, numa perspectiva psicológica.
E isso me faz afirmar que essa obra audiovisual é sobre CORAGEM. Sim, coragem de encarar-se, mergulhar em si, ver-se, ressurgir. E é aí que entendemos que tudo passa, mas antes é preciso ver-se, ver-nos. Isso é natal.
Mergulhar no rio tem uma simbologia profunda para esses dias: é um convite para o autocuidado e para a autorresponsabilidade. Pois num mundo tão e cada vez mais superficial é essencial esse encontro consigo.
Depois de mergulhar, a cura vem. É um resgate, um encontro com algo ancestral, que estava esquecido, inativo. O mergulho – a morte – traz o renascimento (o natal). E eu percebo: a mensagem de Monise também é sobre vir à tona, renascidas (com tudo o que renascer tem de bom e de desafios).
E o que fazemos com recém nascidos? Cuidamos, nutrimos. Aqui entra a imagem pagã, também copiada pelo cristianismo, da eterna criança simbólica que podemos ser, depois de morrer. Somos Hórus, no colo da feiticeira Ísis, nossa mãe. Vocês conhecem essa imagem da mitologia egípcia, que muito influenciou em como os artistas renascentistas pintaram o natal cristão da Virgem e do menino Jesus?
É preciso coragem para ser criança novamente, para reaprender.
E o que falar de uma das cenas finais? É aqui que entra a cuia, mais uma vez.
Pois Monise, de repente – e como retrato de humanidade nua, crua, vulnerável, criança-, é reconstruída pelo jenipapo negro que lhe é assentado ao rosto pelos delicados dedos ancestrais de Aliã Wamiri Guajajara, que representa a própria vida, que nos levanta, nos ensina e nos ajuda. Nos nutre.
Aliã torna-se um símbolo de Ísis, de Iemanjá, de Jaci, de Nossa Senhora do Amparo, da mãe sem nome de Crispim. De todas que cuidam.
A cena se completa com água caindo por sobre a cabeça de Monise, de uma cuité segurada e sagrada pela Vida Aliã Wamiri.
Assim é o natal: te lembra que precisamos nascer, mas, antes disso, precisamos ser batizados na morte, morte simbólica. E logo seremos nutridos na resistência, na existência, na luta. Para que o pássaro branco que habita nossa cabaça/cabeça possa alçar altos vôos!
É sobre solidariedade e cuidado para com a natureza, para com os alijados, para com os que não chegaram, porque foram massacrados pelo sistema. É sobre a morte do nosso modo de pensar ultrapassado e preconceituoso, é sobre a morte de um conjunto de crenças e ações opressivas; é sobre a morte de uma consciência restritiva; morte de nossa condição social injusta e cruel e individualizante.
O natal é sobre nós com nós e como ressuscitamos.
Um feliz natal, com muitos búzios brancos e cuités. Axé!