A crueza dos buraquinhos e o vento que espanta o picumã

O Confluências do Teatro Brasileiro já nasce memorável e mostrando o compromisso com a arte, trazendo uma programação inteiramente gratuita e respeitando protocolos de segurança.

Com isso, gostaria de destacar o espetáculo apresentado ontem, 05, “Buraquinhos ou O vento é inimigo do picumã” do grupo Carcaça de Poéticas Negras (SP) cuja apresentação despertou incontáveis palmas de um público diverso.

O último ato, intitulado de utopia, é, talvez, a maior retaliação que existe à branquitude, pois demonstra como seria a vida de um corpo não marcado com as chagas do racismo e é esse o ponto que me leva a refletir sobre a peça.

A história de um menino que sai para comprar pães e retorna perseguido por um policial. Um trajeto feito sobre os fios da vida, mostrando as particularidades da vida em muitas periferias do mundo e que você vai se reconhecendo aos poucos visualizando pequenas ações do cotidiano, odores, sensações, mostrando uma divisão espacial e imagética comum de quem compartilha desses territórios alvos do poder coercitivo da sociedade.

A construção da relação com as “rodas tingidas de sangue” que nos deixam apreensivos me jogou nas páginas do “Racismo e sexismo na cultura brasileira” de Lélia Gonzales para pensar nessa extensão do racismo e como construímos seguimentos espaciais criando discursos e violências simbólicas. Contudo, aqui o símbolo desaparece, se torna sensação. O medo é mostrado subjetivamente, como se realmente tivéssemos vivenciando aquela emoção que não é só o segundo que divide a passagem da viatura, mas a tensão vinda com o avistar a materialização do medo.

Anda ancorado na autora extraio das cenas a ideia de que aos corpos de pretos é negado o estatuto de sujeito humano, pois são corpos objetificados e colocados em situações precárias.

Apesar de tudo isso, apesar das condições adversas enaltecidas na mídia, os atores expõem detalhes das subjetividades e demonstram impessoalmente como as vivências aproximadas ganham pessoalidade, pois são nossas próprias ações, nosso cotidiano, nosso dia a dia, nosso modo de interagir, nosso modo de amar, de olhar, se saborear o mundo.

“Buraquinhos ou O vento é inimigo do picumã” me fez pensar nos afetos, não somos números, não somos números, não somos friamente dados. E se não somos um elemento abstrato o excesso desses zeros e vírgulas nos jornais e papeis expõem a crueza de uma sociedade racista. Não é uma mancha de sangue, são afetos mutilados, famílias destruídas, é um coração com sonhos que se esvai e que tem uma cor de pele específica, lugar de origem, classe social, sexualidade…

A utopia é o que garante a chama acesa, é o que permite os pés firmes, é o que nos impele para um caminho que nos ofereça segurança, paz e tranquilidade. E não é um absurdo isso? Absurdo que a nossa utopia seja o básico e o que a branquitude possui: viver sem ser alvo da bala perdida que de quando em vez apaga uma família com 80 tiros por engano ou que cinco criança percam a vida com 111 tiros acidentais.

“Buraquinhos ou O vento é inimigo do picumã” lavou meu rosto com lágrimas do dia a dia, foi uma forma de gritar por tudo que experenciamos e que por falta de palavras não sabemos como expressar a não ser com uma dor que não sai, uma raiva de ter raiva de ter raiva e saber que por qualquer reação seremos condenados pelos olhos de uma mácula estrutural. São os olhos que nos seguem nos supermercados, nas lojas, nos shoppings, nas viaturas, em todos os lugares.

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