Revisão: Paulo Narley
A Lagoa de Parnaguá – bem ao sul do Piauí – carrega inúmeros encantos. “Cheia de rumores, vozes e luzes errantes”¹, é possível se deparar em diferentes horas do dia com um menino brincando nas margens, com um homem de barba ruiva sentado olhando o tempo ou mesmo com um senhor de longa barba branca saindo das águas.
Uma das histórias que se ouve sobre a Lagoa de Parnaguá fala de uma senhora muito rígida que queria conseguir o casamento perfeito para as três filhas. No entanto, a mais velha acabou se apaixonando por um “belo e robusto mancebo” de cabeleira negra, mas que não era nem de longe o tipo de pretendente que a mãe esperava².
Vendo que não conseguiriam ficar juntos, o rapaz decidiu voltar para a terra natal, mas antes disso os dois resolveram ter uma boa noite juntos para se despedirem apropriadamente. Pouco tempo depois, a jovem descobriu estar grávida e que o pai da criança morreu em um incêndio.
O que o povo ia falar? Desesperada, ela fez de tudo para esconder a gravidez dos olhos da mãe e da sociedade. Quando o menino nasceu, ela o colocou dentro de um tacho e jogou no rio, que corria por ali, mas a criança não afundou, duas mãos saíram das águas e a pegaram no colo. Uma sereia, “apoderando-se da criança e aconchegando-a ao seio”², resolveu criá-la e dar a ela um lar.
Foi então que o mundo desabou em uma tempestade. A terra tremeu e se abriu em fendas de onde começou a brotar água, tanta água que o pequeno rio tomou toda a região se tornando o que é hoje a Lagoa de Parnaguá. A partir daí, quem se avizinhava dessas águas passou a ouvir o choro de uma criança, a ouvir vozes e a ver coisas.
“A criança, arrebatada pela sereia, é conhecida pelo nome de filho-da-mãe-da-água. Consideram-no menino, pela manhã; homem, ao meio-dia; e velho, ao anoitecer”².
Bugyja Britto (1907-1992) conta uma versão um pouco diferente dessa história. Para começar, a mãe do Barba Ruiva, que se chama Miridan, é uma indígena do povo Acaroás. O menino é jogado nas águas do rio, ficando “sob os cuidados das iaras, e vivo, sempre vivendo e sempre curumim”. Apesar de permanecer como criança, ainda é descrito como “de cabelos loiros como a cor das tardes tropicais do mês de maio, e de barbas longas”.
Um dos pontos mais curiosos que Bugyja traz da lenda é que ver o Barba Ruiva seria um prenúncio de bons tempos de chuvas: “aparecerá nas tardes langorosas do mês de março, indicando os anos seguintes de bons invernos, ou maus invernos se não aparecer”. Agora, ouvir o Barba Ruiva falar não seria algo bom, ele se mantém calado o tempo todo, porque no dia em que resolver falar será para anunciar o fim do mundo.
Alfredo de Freitas (1862-1891), por sua vez, também falou um pouco sobre a lenda e descreve o encantado da Lagoa de Parnaguá como um “espectro sombrio e raivoso de um velho, que exalava uns gemidos doloríssimos (…) às caladas da noite”, não menciona um menino ou um homem de barba ruiva, ele inclusive chama o encantado só de Barba Branca.
Em texto de 1884, Valle Cabral descreve a figura da lenda como sendo um homem de pele alva, “estatura regular” e de cabelos “avermelhados”. Em seguida, ele traz um relato de uma senhora chamada de Damianna:
“Não está vendo esta lagoa? Pois bem; é encantada e algum dia ela há de crescer tanto, que encobrirá toda esta vila e todos nós morreremos afogados. Antigamente não havia lagoa, em seu lugar era uma imensa mata de carnaubeiras, cortada por um riachinho. A água que a gente daqui bebia era tirada de cacimbas cavadas à beira do riacho.
Uma ocasião uma moça tendo ido buscar água nas cacimbas, inesperadamente dá à luz a um menino, que por não lhe convir que sua mãe soubesse e não conhecendo o amor materno, atira desapiedadamente a pobre criança em uma cacimba cheia d’água. Isto foi bastante para tomar aquele lugar encantando; logo no outro dia, as águas do riacho tinham crescido tanto que já encobriam todas as cacimbas. Em menos de uma semana aquela mata de carnaubeiras tinha sido substituída por aquela lagoa, que ameaçava de uma hora para outra engolir toda a vila, assim como já a tinha engolido em parte.”
Essa característica de que a lagoa está sempre crescendo já havia sido mencionada por Gustavo Dodt, em 1873, que, apesar de usar um tom bem cético ao falar sobre as lendas da região, trouxe algumas informações interessantes. Nas contagens dele, a lagoa de Parnaguá teria na época “15km comprida e 5km larga” e “ganha todos os anos mais terreno”.
Sobre a lenda do Barba Ruiva, ele conta “que se refere a um infanticídio” e que vaga pela lagoa “a criança assassinada na forma de um velho com barbas brancas e assentado em uma vasilha de ouro” – essa “vasilha” talvez seja uma referência ao tacho de cobre, que existe em outras versões da história, no qual a criança foi jogada na água.
No fim, essa é uma lenda de muitas transformações: manhã, tarde e noite mudam a aparência do Barba Ruiva; o que antes era um rio ou um poço/cacimba se torna uma das maiores lagos naturais do Brasil, e que, hoje, devido à ação humana, está passando por mais uma mudança e perdendo volume de água de uma forma espantosa. Atualmente, ela tem 12km de comprimento por 6km de largura; no entanto, em 2015, chegou a secar completamente. Cada ponto da lenda carrega muita história, cada transformação diz muita coisa.
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Referências
1. Dicionário do Folclore Brasileiro – Câmara Cascudo
2. Do Rio de Janeiro ao Piauí pelo interior do país – Joaquim Nogueira Paranaguá (1855-1926) (aqui)
Zabelê e Miridan – Bugyja Britto
Lendas e superstições do Norte do Brasil – João Alfredo de Freitas
Achegas ao estudo do Folklore brazileiro – Valle Cabral – Gazeta Literária (RJ), nº 18 (1884) – o português dos trechos usados desse texto foram atualizados para melhor compreensão
Descripção dos rios Parnahyba e Gurupy – Gustavo Dodt (1873)
Lagoa de Parnaguá já perdeu 94% de extensão de água, diz especialista – Cidade Verde (2015) (aqui)
Barba Ruiva – Lendas Piauienses – Geleia Geral (aqui)
Mitos Piauienses – Rafael Nolêto (aqui)
As quatro imagens do final do texto são de Rafael Nolêto (aqui)