O Pescador e o Rio – A Lenda do Cabeça de Cuia

Cena do filme O Pescador e o Rio, baseado na lenda do Cabeça de Cuia. Imagem vista de cima. Mostra uma mulher com um vestido azul sentada em uma canoa nas margens de um rio.

Revisão: Joana Tainá

Aviso de gatilho: violência contra a mulher.

“Essa surra, Maria, que te dei é pra tu guardar de lembrança como a última coisa que eu vou te dar nessa vida, porque de mim e de minhas coisas tu vai é receber mais nada. (…) esquece que eu sou teu pai.” (Fala do filme)

Em 2018, o diretor Flavio Guedes lançou O Pescador e o Rio – A Lenda do Cabeça de Cuia. Gravado em Picos, Bocaína e Sussuapara entre novembro e dezembro de 2017, o filme se inspira em uma das lendas mais conhecidas do Piauí para contar em seus 77 minutos uma história de violências e denúncia.

A versão mais conhecida da lenda nos coloca nas margens dos rios Poti, onde conhecemos Crispim, um pescador, que num rompante de raiva mata a mãe com um pedaço de osso de boi, e por causa disso foi amaldiçoado a ter a aparência de um monstro.

No entanto, o filme não para por aí. Um questionamento permeia toda a obra: “Mas o que realmente levou Crispim até esse episódio fatídico?”. A história contada por Flavio Guedes mergulha nas águas do rio Poti em busca das razões psicossociais e uma possível resposta para o Cabeça de Cuia.

“Se tive inspiração de outros filme e/ou diretores foi algo inconsciente. Na verdade, busquei me inspirar, além da própria lenda, na violência doméstica que infelizmente ainda macula nossa sociedade, a violência contra a mulher, que ainda continua, e precisa ser combatida, e acredito que pra combatermos, precisamos falar sobre, e não nos calar. O filme mostra isso.” (Trecho da entrevista dada por Flávio Guedes ao Geleia Total)

Uma saga de Maria(s)

O filme começa com uma espécie de prólogo, apresentando Crispim já na forma de monstro atacando uma mulher na beira do rio (com muitos gritos) para então voltarmos cem anos e vermos como tudo começou.

Ao contrário do que se espera, a câmera resolve se virar para outra personagem e a partir daqui acompanhamos muito mais a história de Maria – a mãe de Crispim – com suas angústias, sonhos e com uma relação complicada com o pai. “Não criei filha para ser vagabunda”, ele é um homem ignorante e controlador, não aceita o casamento de Maria com um rapaz chamado de Zeca, e, por conta disso, chega a dar uma surra na filha.

Um pouco mais para frente, já juntos, os dois jovens vão construindo as próprias vidas em meio às dificuldades, e logo em seguida o sonho de “felizes para sempre” depois de fugir da casa do pai se esfarela frente às agressões de Zeca, juntamente com as enormes exigências em dar filhos a ele. Com isso, a história de violências e controle se repete e Maria chega a ser espancada mesmo grávida.

Então, nasce o filho – Crispim. O menino já vem ao mundo dentro de um barco e abraçado pelas águas do rio. Ele vai crescendo, tem muito amor pela mãe, mas imita o pai em tudo. Torna-se um homem ciumento e agressivo.

 “Nossa Maria é violada desde a casa do pai, passando pelo esposo até chegar no filho que comete o brutal assassinato. Quantas Marias ainda temos hoje, que sofrem caladas, que são silenciadas, que são assassinadas. O filme é sobre isso. Eu via as pessoas se indignarem vendo algumas cenas do filme, e eu pensava: ‘Ufa! É isso. É pra se revoltar mesmo, mas sobretudo, pra agir, pra combater e denunciar a violência que de repente possa verificar do seu lado, no seu lar, na sua vizinhança. Seja ela de que grau for. Basta!’”. (Trecho da entrevista dada por Flávio Guedes ao Geleia Total)

As cenas de agressão que seriam as mais pesadas de se ver não são explícitas, elas acontecem fora de tela, o público apenas ouve os gritos, o que é um ponto positivo, apesar de essas cenas serem um pouco longas demais para o meu gosto.

O azul, a trilha sonora e o silêncio

Uma das coisas que me chamaram a atenção durante o filme por algum motivo foi a caracterização de Maria. Em todas as cenas dela, com exceção de uma cena (se não me engano), ela está vestindo alguma peça de roupa da cor azul.

“Foi intencional. O filme é muito forte, seco, bruto. O azul é celestial e ao mesmo tempo é forte, como a Maria do filme, uma mulher que apesar das agruras, mantém sua força sem perder sua humanidade.” (Trecho da entrevista dada por Flávio Guedes ao Geleia Total)

Esse detalhe também me remeteu à figura religiosa da Virgem Maria, que é representada vestindo um manto azul. O que se somou a essa minha impressão foi uma das cenas de abertura com as lavadeiras na beira do rio cantando Senhora Santana – uma música tradicional que faz referência à avó de Jesus:

“Senhora Santana na beira do rio (bis)

Aonde ela passava, deixava uma fonte (bis)

Quando os anjos passam, bebem água dentro”

Ainda falando sobre música quero chamar a atenção para a trilha sonora que conta com “Aralume” e “Bendito” do Quinteto Armorial. Ela dá um tom ao filme que é um misto de agitação e melancolia, o que combina bastante com a personagem de Maria.

Por outro lado, o silêncio também compõe o filme. Em uma cena onde Maria e Zeca estão comendo, tudo é visto de cima, o que nos permite reparar na diferença entre a quantidade de comida nos dois pratos. E quando ele fala que não quer mais comer, Maria é obrigada a também se levantar e ir lavar as louças. A violência está presente mesmo nos momentos de silêncio.

O Pescador e o Rio é uma das adaptações mais interessantes da lenda do Cabeça de Cuia. Traz para debate temas importantes, dá voz para personagens silenciados nas versões mais conhecidas. É um filme piauiense para se conhecer.

Foto de Flavio Guedes. Ele está sorrindo sem mostrar os dentes. Na foto, ele está careca e tem o bigode ligado à barba que está começando a ficar grisalha, bigode e barba são negros. Ao fundo há uma estante com livros iluminada por uma luz rosa.

Diretor e obra

Flávio Guedes Barbosa, nascido em Oeiras onde deu seus primeiros passos no Teatro. Morou em Picos por 12 anos, sendo hoje Titulado Cidadão Picoense. Formou-se em Pedagogia, foi professor, e construiu sua carreira artística no grupo Projeto Bar Cultural, protagonizando diversas peças como “Morte e Vida Severina” de João Cabral de Melo Neto, e “O Santo Inquérito”, de Dias Gomes, pelas quais foi premiado Melhor Ator de Teatro em festivais no Piauí, Pernambuco e Ceará. No audiovisual, já levou três dos seus filmes para os Cinemas, além da exibição em Festivais e Mostras em diversos Estados do Brasil, como Piauí, Ceará, Pernambuco, Minas Gerais e São Paulo, além de exibições em outros três países.

“O Pescador e o Rio logo será disponibilizado novamente no Youtube, onde tem outros trabalhos nossos, inclusive sobre outras duas lendas piauienses. No momento, estamos finalizando o filme ‘Uma Mulher Chamada Esperança’, gravado em Novembro passado, e que conta, numa ficção livremente inspirada na carta escrita por Esperança Garcia, a historia dessa mulher tão importante e necessária.” (Trecho da entrevista dada por Flávio Guedes ao Geleia Total)

Trailer do filme O Pescador e o Rio:

Depoimentos sobre O Pescador e o Rio:

Referências

Cabeça de Cuia – Lendas Piauienses (Geleia Total)

O Pescador e o Rio será exibido nos cinemas do Teresina Shopping (Meio Norte)

 

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