Cores Sob Nossas Peles, de Noé Filho, me tocou dois anos antes de eu ter o prazer de receber o livro em mãos, através do conto que logo afirmo se tratar do meu favorito dentro da obra.
Trepidei consideravelmente diante da mesa “Afetividades – 50 anos do levante de Stonewall” que se passou no último dia da 17ª edição do Salão do Livro do Piauí (SALIPI), no espaço Rosa dos Ventos, na Universidade Federal do Piauí (UFPI). Digo que trepidei porque minha fobia social, na época, ainda não estava em tratamento.
Mesmo assim fui, envergonhadíssima, e pus-me diante das diversas pessoas no palco que eu já admirava de longe, em silêncio inquieto, dentre as quais sentavam-se para palestrar e dialogar com o público o próprio Noé Filho, idealizador e coordenador da Geleia Total. Acho importante destacar que outra figura de igual importância e potência para mim era a maravilhosa Letícia Nascimento, de quem espero poder falar a respeito num futuro próximo.
Então estávamos lá, e, no meio das discussões e interações, surgiu, de repente, outra pessoa que imediatamente se tornou alvo do meu assombro (para mim, assombro é sinônimo de admiração), declamando e interpretando com gigantesca intensidade o conto que mencionei, chamado Eu sei como chorar: Alisson Carvalho.
A verdade é que chorei, por dentro e por fora, porque as palavras me levaram através de um rio denso e viscoso, violento, e ao mesmo tempo tão acalentador e necessário, que tal difusão me deixou numa espécie de praia de rio, molhada, encharcada, na verdade, mas curiosamente feliz. Ouvi sons de pássaros que cantavam, sem parar: “Todos sabemos, e devemos, chorar”. O rio a que minhas emoções me conduziram jazia calmo e receptivo diante de mim, e o chão tinha aquele cheiro agradável do barro – pesado e áspero – somado às águas lisas que vinham banhar meus pés submersos.
Tudo bem. Talvez eu tenha trazido aqui uma de minhas viagens mais desvairadas que minha mente provoca. Mas é a verdade, e é com ela que busco me expressar.
Eis que possuo o livro em mãos. De cara, o trabalho gráfico é lindo e conquistador. Não há possibilidade de olhá-lo e não desejar explorar seu conteúdo.
Li todas as páginas com entusiasmo, tristeza, euforia, tudo entrelaçado. A escrita de Noé é deliciosamente fluída, e você, uma vez imergindo na gama de cores de nossa bandeira, é conduzido ao longo do rio que mencionei anteriormente. E claro, ao fim de cada conto, chegará na pequena e tranquila prainha, com Nina Simone tocando ao fundo de sua memória (e eu garanto que, caso não conheça Nina Simone, fará questão logo após ler a primeira história); um turbilhão de possibilidades de mundos e corpos nos é apresentado de modo cativante, didático e, como escreveu Alisson Carvalho no prefácio da obra, subversivo.
Relendo o conto o qual ouvi ser declamado no ano de 2019, não apenas me emocionei profundamente (de novo), como percebi uma crítica religiosa extremamente importante, ainda mais para aqueles que justificam seu ódio e sua ignorância através de dogmas que, ao meu ver, já não fazem sentido algum e não condizem em nada com o mundo real, o mundo palpável.
Acho que posso dizer que, com Cores Sob Nossas Peles, possuímos um poderoso manual sobre respeito, amor e essencialmente empatia. No Conto Quero ser o homem que você é recebemos em cheio uma lição valiosa sobre a dor que o bullying pode acabar provocando naquele que o pratica, uma realidade certamente típica que dificilmente pensamos a respeito. Óbvio: o drama de quem vive qualquer discriminação ao longo da vida não pode jamais ser mensurado por outrem, e muito menos, relativizado com supostas angústias e arrependimentos que um possível agressor – seja no aspecto de violência física ou verbal – possa vir a sentir. No entanto, a atenção que Noé busca trazer por meio dessa reflexão é claramente voltada para o público cis e hétero, como se dissesse: a vida tem lá suas surpresas, jovem gafanhoto.
Preciso mencionar, porém sem dar muitos detalhes, um outro conto, intitulado O retrato da minha ex, que é o sonho de muitos corpos dissidentes com relação ao sangue familiar.
Não quero destrinchar e entregar todas as histórias desse livro, mas gostaria ainda de deixar registrado aqui o sentimento que partilho com a personagem de Palavras ao Vento: “Eu sou que nem esse coqueiro. Também estou torta, tentando resistir e vou conseguir cada vez mais deixar que as palavras vindas da ignorância voem pelo vento, para bem longe.” Preciso agradecer por essas palavras, Noé.
Talvez vocês, leitores que ainda não tiveram acesso a obra (confesso que me sinto um tanto atrasada) não façam a mesma viagem que fiz pelas águas dos rios; pode ser que sejam portados por uma rajada de vento, ou conduzidos dentro de um metrô pelo qual das janelas consigam enxergar de tudo, turbulência e mansidão, túneis escuros e elevações de terra repletas de verde vivo. Ou vermelho. Ou amarelo. Quem sabe azul ou roxo também.
De qualquer jeito, ao fim, chegarão num destino que os lembrará da calma, da paz e, sobretudo, esperança.