Acredito que para começar a falar da obra, para mim é imprescindível falar também sobre o autor.
Conheci Ítalo Damasceno em uma noite da qual eu não esperava muita coisa além do habitual: afogar meu cansaço em alguns goles de cerveja ao lado de pessoas amadas na mesa de um bar (isso já está perto de completar três anos) e depois voltar para casa. No entanto, meu namorado querido e talentoso Júnior Magrafil, e meu amigo incrível e igualmente talentoso Jader Damasceno, esperavam um velho amigo que eu ainda não tinha conhecido.
O fato é que, desde o momento em que Ítalo entrou pela porta do estabelecimento, até o último gole de cerveja daquela noite, eu fui encantada por ele, por nossas conversas acerca de música, pintura, filmes, livros, enfim, arte, arte e mais arte. Lembro-me de me sentir muito honrada pelos elogios que ele fez aos meus quadrinhos, sendo eu até então uma iniciante, e lembro-me ainda de retornar ao meu covil, enquanto pensava dentro do carro mais ou menos o seguinte: “ele é um artista para se dizer, no mínimo, admirável, e não vejo a hora de um livro, filme ou algo assim de sua autoria vir ao mundo – isso é de extrema necessidade.”
E eis que, há cerca de um ano atrás, era publicado de maneira independente o primeiro livro do artista, uma novela literária de época, a qual devorei em um dia: O Falso Francês! Realista, perspicaz, divertida, e, ao mesmo tempo em que a história se ambienta em 1849, é de uma contemporaneidade incrivelmente natural. Deleitei-me, e logo fiquei eufórica, pois em questão de pouquíssimo tempo após este lançamento, ítalo anunciou que o próximo livro não tardaria a sair.
Aguardei ansiosa.
Agora, em 2021, infelizmente ainda em tempos sombrios de pandemia, o escritor conseguiu com muito esforço e um carinho óbvio, nos presentear com o segundo livro, O Segredo de Amarílis Antúrio, e prazerosamente tive a sorte de adquirir a obra acompanhada do perfume o qual nos trás a fragrância da própria história – Pois nela imergimos na beleza desta flor nativa. Não darei nenhum spoiler, porém, deixarei claro que o livro, embora fictício, nos trás um contexto da história brasileira de suma importância para entendermos toda a construção e consolidação de sistemas que oprimem, agridem e matam até hoje, como o patriarcado e o racismo estrutural.
Mas Ítalo utiliza muitas vezes de meios cômicos que, de certa forma, ridicularizam diversos comportamentos antiquados, advindos, se não me falha a memória, somente de personagens homens; ainda que esses homens sejam por demais detestáveis (falo isso pelo meu sentimento particular sobre eles), conseguimos compreender toda a estrutura de poder que os faz agir de maneiras X, Y ou Z.
Ah, e uma coisa que não posso jamais deixar de citar aqui, provavelmente a coisa que mais me agradou e me fez sorrir de orelha a orelha tal qual o Gato de Cheshire, de Alice No País das Maravilhas, por incontáveis momentos ao decorrer da leitura: a presença de diversas figuras femininas donas de si (até onde a sociedade da época permitia o desafio); desde Fabrícia Marret, a musa inspiradora de João Manuel para o seu próximo Folhetim, à esposa deste, Edith das Almas, até Sávia Olímpia. Nossa, Sávia Olímpia! Essa mulher me causou arrepios, e toda a temática que a conduziu (ou talvez ela mesma tenha conduzido a temática) me fez lembrar de Virginia Woolf e seu mais famoso ensaio Um Teto Todo Seu, o que me deixou satisfeitíssima. Grande destaque também à personagem Viscondessa de Nambiquara, com seu tamanho imponente e sua frase: “Um homem que aceita ser casado com uma mulher que lê não deve ser de todo mal.“
A discussão trazida sobre o racismo estrutural é pesada (e como não haveria de ser?), mas Ítalo tem a capacidade de trazê-la de forma sutil, delicada, e com uma carga dramática impressionante e precisa. Reafirmando o que fora dito acima, o contexto político social da época é descrito aqui, eu diria que de maneira até didática, capaz de fazer qualquer bom entendedor com acesso à leitura compreender porque vivemos no mundo em que vivemos, e mais, no país em que vivemos.
A pauta sobre identidade de gênero é outra coisa que me pegou fortemente, pois a trama apresenta vivências que muito me lembram as minhas próprias e as de pessoas que estimo demais. Há quem possa dizer, certamente alguém que não leu o livro, que trazer tal pauta para uma história que se passa tão antigamente é “forçar a barra”; no entanto, eu preciso frisar aqui que pessoas trans, bem como qualquer pessoa dissidente, desafiadora das normas cisheteronormativas, existem desde sempre, e a única diferença está no apagamento e no assassinato. Algo que Ítalo faz para nos mostrar isso é a revelação da existência de uma produção do francês Balzac, intitulada Sarrasine, datada de 1830, que dá uma necessária chacoalhada dentro da obra e do leitor.
Além disso, há um diálogo próximo aos capítulos finais entre João Manuel e Fabrícia que tanto emociona a qualquer alma sensível, quanto é capaz de fazer compreender claramente o dilema de ser quem se é em um mundo que rotula, define e enfurna seres humanos dentro de caixinhas.
O que mais tenho a dizer sobre este livro? Tantas coisas! Mas assim eu entregaria detalhes da história que, descobrindo durante a leitura, é muito mais empolgante e emocionante; entrego-lhes, pois, em suas mãos, leitores. Ah, e eu, então, com minha fragrância de antúrio em mãos, e minha mania de me transformar em personagens que admiro porque muitas vezes me canso de mim, tenho vivido ultimamente com o cheiro da personagem pela casa inteira, imitando seus trejeitos, elegância, classe, e, claro, sua potência no ato de apenas existir.
Tudo o que tenho a fazer é dizer que eu estava certa desde o início: Ítalo Damasceno entregou obras maravilhosas e únicas ao mundo, e sigo morrendo de ansiedade pelo que vem por aí. Obrigada, Ítalo.
Você pode adquirir ambos os livros (O Falso Francês, O Segredo de Amarílis Antúrio) com o próprio autor em sua conta no Instagram @biitalo, em versão virtual através do site da Amazon (aqui você também encontra a versão do Falso Francês em inglês, com o título Not Quite French; CHIQUE!), na Entrelivros, na Anchieta e na banca de jornal do Pão de Açúcar da Homero.