Revisão: Joana Tainá
Certo dia, uma amiga me contou um causo estranho que aconteceu a ela em uma viagem para a casa de sua vó. De acordo com ela, enquanto dormia numa rede sentia que algo colocava força nela para que se balançasse sendo que, naquela situação, estava sozinha. Confidenciou a mim achar que se tratava de uma assombração. E, quantas vezes não ouvimos histórias sobre assombrações? Só que, imagine que ao invés de ouvir sobre assombrações, você também sentisse e fosse obrigado a lidar com elas antes que esses seres insólitos se rebelassem e te consumisse? Em Control, estamos dentro de uma casa mal assombrada. E, o pior disso, é que isso não é só história, é tudo verdade.
Jesse Faden, uma mulher alta e de cabelos ruivos que passa anos procurando por seu irmão desaparecido, Dylan Faden, certo dia descobre que ele está em um imenso prédio em Nova York, chamado de Departamento Federal de Controle. Ele demonstra ter a fachada de qualquer outra firma ou repartição numa cidade grande, documentos espalhados pela secretaria, protocolos a serem seguidos, etc., mas, adentrando por entre suas salas vazias, percebemos que algo de errado aconteceu.
As localidades iniciais do edifício que, graças ao belo trabalho visual do game, introduzem uma atmosfera realista a partir da exatidão na sua construção e a presença de papeladas e documentos, típicos de firma. Só que isso começa a se romper, a partir de documentos que, antes eram concisos e específicos, agora aparecem censurados por listras, as portas dão para lugares que não deveriam dar, pinturas e pessoas esquisitas surgem nos corredores e vozes na sua cabeça falam coisas sem sentido algum, como se todo o prédio tivesse brincando contigo e, de fato, você descobre que ele realmente estava.
O último jogo da Remedy Entertainment, Control emula o sentimento de estar numa casa mal assombrada e eleva isso a última potência. O Departamento Federal de Controle, prédio onde Jesse pensa estar seu irmão, mostra ser na verdade um lugar chamado A Antiga Casa, ou, traduzindo de maneira mais correta da versão em inglês, A Casa Mais Antiga. E o que esse Departamento de Controle almeja controlar varia bastante, entre um telefone que prende pessoas dentro deles, geladeiras assassinas que exigem atenção, disquetes paranormais e fios de luz que, se puxados três vezes, o teleporta para um hotel a beira-mar.
Control traz uma narrativa construída nos pilares do insólito contemporâneo, buscando referências em obras do cinema como os filmes de David Lynch, pioneiro no surrealismo, além de, inclusive, ser comparado com a produção literária de autores latinos como Borges e seus labirintos, Cortázar e suas brincadeiras com a linguagem, ambas as características bastante frequentes no game. E, além disso tudo, existe um outro fator que enlaça todos esses outros, como um fator comum entre eles: a verossimilhança.
Então, pensando numa forma de incrementar uma discussão a respeito de narrativa e linguagem em games, trago algumas linhas de conhecimento de estudos literários para que, a medida do possível e respeitando o sentido e estrutura das diferentes expressões artísticas, game e literatura, criar algum entendimento de como as narrativas insólitas conversam com o telespectador.
Como conceituado pelo escritor e teórico espanhol David Roas em sua coletânea de artigos intitulada “A ameaça do fantástico”, “uma das condições essenciais para o funcionamento de obras fantásticas” é que “os acontecimentos devem se desenvolver em um mundo como o nosso, isto é, construído em função da ideia que nos temos do real”. Essa concepção de fantástico provém dos estudos do tema num mundo onde já existe a teoria da relatividade, uma forma de enxergar a realidade que se aplicou na literatura na forma das obras insólitas do século XX, como nos autores citados anteriormente, Borges e Cortázar.
Onde eu quero chegar com isso é que, para que uma obra execute com maestria a criação do sentimento de medo ou de estranhamento em uma narrativa fantástica, ela precisa ter um excelente desenvolvimento de mundo real, também chamado de mundo não transgredido, pois, se tratando de algo insólito, obras como essas buscam a transgressão. Control acerta em cheio não só porque sabe transgredir, mas porque também tem o que transgredir.
No game, tudo é feito pra passar o sentimento de que, de fato, é real. O que é chamado entre os desenvolvedores de “world building” ou construção de mundo, juntamente do trabalho dos escritores, foi responsável pelo desenvolvimento da história que pode ser compreendida com os inúmeros documentos encontrados pelo jogo, pelas placas que o jogador encontra pelo mapa e o guiam pelo labiríntico prédio, quase como aquelas que você encontra no Shopping da Cidade e usa pra achar uma banca de bermuda e camisa, e combinado com os elementos de verossimilhança, são expostos também os elementos de absurdo que, juntos, tornam a ideia de se existir uma empresa estatal feita especialmente pra cuidar de lendas urbanas, algo factível de acontecer.
Outro ponto debatido na obra de Roas é de como a linguagem do insólito (lembrando que em seu livro ele fala sobre literatura e, poucas vezes, de artes visuais como cinema ou games) buscou, após um cansaço na transgressão temática, utilizar a transgressão em níveis estruturais ou linguísticos, algo que o game trabalha colocando o absurdo nas suas mecânicas de ataque, movimentação e exposição narrativa.
Em Control o jogador atira com uma arma que, em algumas cenas, é vista com o cano em movimento, como se estivesse falando, ou pode também usar poderes telecinéticos para arrancar com o poder da mente um pedaço da parede de um lugar e arremessar num monstro que está flutuando por aí. E, claro, posteriormente você também vai flutuar porque, no mundo de Control, tudo isso é bem normal. Não tem nada sendo transgredido… Nada…
O que também contribui com que o jogo tenha uma narrativa vasta e fluida, são suas missões principais e secundarias que pouco se diferenciam. Digo isso, pois apesar de as principais serem necessárias para o avanço na história do game, as secundárias recompensam bem o jogador não apenas com mais informações sobre o mundo e mais poderes ou habilidades secundárias para serem utilizadas, mas também com momentos, transições e batalhas memoráveis contra chefões bizarros. Então, por mais que em média, Control tome umas 10 horas para ser concluído, existe facilmente mais 5 ou 6 horas de missões secundárias, sem contar as duas expansões que já foram lançadas e trazem conteúdo de história extra.
O conjunto da obra se esforça para, junto da sutil estranheza visual, trazer um tipo de requinte, de elegância, para os visuais dos lugares. Uso da simetria como uma forma de realçar um padrão até o ponto de, esse mesmo uso se tornar estranho aos olhos do jogador e propondo uma interpretação da transgressão da simetria, que representa um ideal de realidade. De longe, é um mais belos jogos já feitos, sua estética é estonteante.
E no parágrafo seguinte, vou comentar sobre algo que, se você tiver interesse de jogar por si mesmo, pode ser considerado spoiler. Então, aviso dado.
Em um dos capítulos finais do game, o jogador é apresentado a um lugar chamado Ashtray Maze. Você precisa passar por esse lugar só que, ao adentrá-lo, as paredes começam a mudar e levam você a inúmeras direções diferentes até que, por fim, é mandado de volta para o começo. Para passar desse labirinto mágico, o jogador precisa fazer algo, que não vou comentar aqui, mas ao fazê-lo o jogador recebe um fone de ouvido e retorna ao labirinto, coloca em si o fone e deixa a música tocar, todas as observações feitas sobre como o game conversa em diversos níveis, narrativos e mecânicos, com o absurdo, acontecem juntas, simultaneamente. Se tiver curiosidade sobre como o game trabalha esse conceito de labirinto mágico, dá uma olhada no vídeo abaixo.
Por fim, Control é um game muito gostoso de jogar, onde colaboramos com a personagem Jesse Faden e a ajudamos a encontrar seu irmão perdido dentro de um prédio mal assombrado. Sair flutuando por aí e arremessando pedaços de rocha nas assombrações flutuantes do edifício labiríntico é extremamente fluido e prazeroso. Todos os seus absurdos são construídos de maneira única e suas referencias a lendas urbanas, ao cinema de David Lynch e seus textos e mecânicas diversificados são os pilares que deixam o seu insólito tão solido.
Na sua linguagem e na sua narrativa, Control é tão estranho que se eu dissesse que você, ao terminar de jogar, passaria o resto da semana vendo assombrações dentro de casa, não seria algo tão absurdo. Afinal, está tudo normal dentro de Control… Tudo está normal… Tudo est…………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………..