O escritor Isaque de Moura lança, no fim do mês de abril, o seu mais recente trabalho literário, “Morto, nada me faltará”. O romance, publicado pela Editora Penalux (SP) e escrito entre os anos de 2018 e 2020, aborda diversas questões relacionadas à sexualidade, traumas e conflitos familiares, sendo também o segundo livro do escritor piauiense. Para Isaque de Moura, a publicação representa:
“Um profundo esforço pessoal. Escrever um livro é aprender a suportar o silêncio da página vazia, porque nela não há espaço para concessão nem autoindulgência.
No romance, em especial, você se dá conta das suas limitações, das suas fraquezas e da sua incapacidade crônica de enfileirar duas ou três linhas. E talvez não demore também a se perguntar: será mesmo que preciso me sujeitar a isso? Há tanto mais o que fazer. Mas de repente você se lembra de que é um escritor e não lhe restam muitas escolhas. Já está despido. Nu, como veio ao mundo. Espremido entre páginas defeituosas e confusas. E continua. Ou entrega os pontos.
No meu caso, em particular, vejo essa publicação como um exercício de voz, narração, estilo e experimentação. Vejo também como um desatino, uma deliciosa provocação. Certos temas foram sacralizados na literatura. Cabe ao escritor violá-los, esticando até onde for possível as arestas. Ultrapassar as convenções sociais e morais, sem receio de dizer o que é desagradável, sujo ou imoral. Sem medo de parecer um louco.”
“Morto, nada me faltará’ narra a história de um homem de trinta anos viciado em garotas de programa. Funcionário fantasma em uma repartição pública, ele se envolve em frustradas experiências sexuais e amorosas, sem encontrar em nenhuma delas o menor sinal de interesse ou felicidade.
“É um romance controverso, triste, ácido e sufocante”, destaca o autor.
A tensão sexual e o humor corrosivo são marcas recorrentes no universo ficcional de Isaque de Moura, e no romance parecem despontar sem nenhuma moderação. “Se você não gostou do meu primeiro livro (No meio do tiroteio), certamente vai odiar o segundo”, Isaque garante.
As primeiras leituras também revelam alguns dos temas que podem ser encontrados no romance: “O autor escreve muito bem, encadeia com perfeição as ideias, o texto flui entre palavras bem escolhidas, numa linguagem crua, demasiadamente crua e sem disfarces. Não deixa de ser singular o olhar clínico do protagonista, as reflexões brutais, o próprio fluxo das experiências noturnas. Há passagens que me deixaram completamente estarrecida. O ‘politicamente correto’ passa longe da narrativa. É um livro sujo, cruel, até intragável em certos momentos. Um enigma cheio de contradições…”, destaca uma das leitoras.
“O estilo é bastante maduro. A narrativa evolui bem, as personagens são fortes e marcantes, há uma ironia interessante nas entrelinhas. Para o meu gosto pessoal, a leitura é um pouco desagradável. O protagonista é um sujeito agressivo, misógino, e para ser sincera esse universo que não me interessa muito. Mas isso é bem pessoal. Tenho certeza que outros leitores gostarão do livro, que mostra muita autenticidade”, comenta outra leitora.
O romance conta ainda com pinturas e colagens da artista plástica letã Julia Soboleva, mestra em ilustração pela Manchester School of Art e atualmente radicada no Reino Unido (UK). As pinturas de Soboleva consubstanciam a atmosfera sombria do romance, as conotações sinistras, o erotismo violento e o humor absurdo. A artista assina a capa e outras duas ilustrações presentes no livro.
O romance está em pré-venda e pode ser adquirido no site da Editora Penalux. Na entrevista a seguir, Isaque comenta mais detalhes sobre o processo de escritura do livro.
Isaque de Moura é escritor. Nasceu na cidade de Teresina/PI, em 1992. Formado em Ciência Política pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), estreou na literatura com o livro de contos No meio do tiroteio (Ed. Kazuá, 2017). Além de ficcionista, trabalha como servidor público federal. Morto, nada me faltará é o seu primeiro romance.
Entrevista – Isaque de Moura
Você exerce outras atividades além da escrita?
Uma porção delas, porque também preciso sobreviver. Mas nada fora da licitude. Trabalho como servidor público, e não tenho queixas quanto ao cargo que ocupo. No passado, em contraste, sofri o diabo na função de bancário. Não por menos: quando você ocupa um posto de atendimento massivo, precisa aos poucos forjar uma personalidade simulada. Isso eu era incapaz de fazer. Há os painéis apitando, os quebrantos da fila de espera, quinze minutos de almoço – traumas irreconciliáveis. Meus chefes certamente viam em mim um desequilibrado, e não lhes tiro a razão: nessa época, que me lembre, cheguei a trabalhar de pijama. Mas essa é outra história.
Como você definiria seu processo de criação literária?
É um trabalho de muito esforço e pouco talento. Nada menos que uma obsessão. Sacrifico um montão de horas apagando ou reescrevendo as mesmas coisas. Também não me considero um escritor criativo. Estrutura e imaginação são dois grandes desafios. Há, contudo, uma qualidade que gosto de ressaltar: não me levo a sério. Estou longe de qualquer pretensão intelectual, de maneira que aprendi a me divertir com as críticas. Tenho perfeita consciência de ser um desgraçado.
Pode nos contar um pouco sobre o conteúdo do novo livro?
O livro narra a história de um homem de trinta anos, afundado em dívidas e viciado em garotas de programa. Funcionário fantasma em uma repartição pública, ele se envolve em diversas situações ridículas, mantendo amizades igualmente ridículas. Seu universo particular não vai muito além de relações vazias, sexo pago e experiências com drogas. Está doente, esgotado. Segue nutrido por todas as ideias ao avesso. Em termos de estrutura, optei por desenvolver o enredo em forma de anti-trama, tentando plasmar na escrita essa atmosfera noturna, sombria, razão pela qual também decidi não nomeá-lo. De que outro modo posso dizer? É um cara desagradável, sem maiores motivações e desprovido de qualquer senso de caráter, como muitos que vemos por aí. Reconhecer que esse sujeito pode ser seu pai, seu marido ou seu amigo é o que deve assustar muita gente.
Então é um livro para se repensar a masculinidade?
Não é o tipo de leitura que me agrada, mas não deixa de ser uma leitura possível.
Alguma outra sugestão?
Sou um escritor de estilo, não de enredo. A mim não me interessam os desdobramentos sociológicos, as questões de gênero ou implicações dessa natureza. Penso a minha literatura como um sistema de formas estéticas que se apoia no absurdo e na experiência da narração. Mais do que desenvolver uma história, quero descobrir a melhor forma de contá-la. Meu desejo é compreender até que o ponto o leitor pode se deixar levar sem a necessidade de reviravoltas espantosas ou efeitos de suspense, motivado apenas pelo fluxo do discurso. Mesmo que um discurso controverso, obsceno, doentio.
Qual foi a inspiração para o romance? Alguma experiência pessoal?
Escrevi-o inspirado em um filme do diretor franco-argentino Gaspar Noé. Tudo porque eu precisava assimilar os limites da construção de um protagonista perverso, dolorosamente desumano e sem saída. Em certo sentido, é uma fronteira perigosa, sabe? Não apenas pelo risco de ser mal interpretado, mas pela exaustão em si. Acredite, o custo emocional é extraordinário. Não foram poucas as vezes em que estive a ponto de largar o romance pela metade, convencido de que não valia a pena o desgaste. Quando mergulhava muito fundo, tinha de voltar à superfície, em busca de um respiro, o menor que fosse. Recebi mensagens de pessoas que leram a versão preliminar do livro e que me desencorajaram a seguir adiante. “Seu narrador é misógino, homofóbico e racista”, elas me diziam, como se eu mesmo não estivesse a par disto. Queriam me dissuadir a abandonar o romance. Foram cagaços dos grandes, e não encontrei outra reação senão rir, tamanha a obstinação da censura patrulheira. Eram pessoas que estavam mais preocupadas em apontar o dedo, desprezando o fato de que todo livro envolve intenção, forma e planejamento. Talvez me tomassem por pateta, é bem possível. No mais, hoje compreendo que essa foi uma etapa necessária ao meu projeto literário. Ao menos tenho a impressão de que jamais voltarei a escrever nada parecido. Desejo retornar à atmosfera dos meus primeiros contos: escrever histórias leves, com mais humor e menos brutalidade. Verdade ou não, o tempo vai dizer.
A cultura do cancelamento não lhe assusta?
De forma alguma. Não escrevo para ser amado ou odiado. Escrevo para ser lido.
Que autores você tem o hábito de ler?
Meus gostos pessoais são bem variáveis. À exceção de ficção científica e fantasia – gêneros que não sinto nenhuma conexão emocional – não me sirvo de maiores discriminações. Mas há um conjunto de autores que me fascina: Henry Miller, Graciliano Ramos, Michel Houllebecq, John Fante, Sylvia Plath, Pedro Juan Gutiérrez, Maura Lopes Cançado, José Lins do Rego e por aí vai. Sem mencionar a literatura russa.
Você acha que o hábito da leitura torna uma pessoa melhor?
Não. Mas certamente não a torna pior.
Como você vê a atual geração de escritores piauienses?
Não vejo. Há um estranho abismo entre os livros publicados por autores piauienses e os livros que efetivamente circulam na cidade. De modo que pouca coisa me chega às mãos – e o que me chega, em geral, é bastante desanimador. Difícil ultrapassar mais que cinco linhas. São livros preguiçosos, deformados, rabiscados às pressas. Autores que escrevem sem borracha. Não conhecem a angústia de esgotar uma resma nem lhes interessa conhecer. Não aprenderam a odiar o próprio texto nem poderiam. Estão mais interessados em publicidade do que em literatura. Enfim, quase nada se aproveita. É claro que também há escritores maravilhosos: escondidos, esquecidos ou a sete palmos do chão. Excelentes, mas sem nenhuma visibilidade. São poucos, mas estão por aí. É preciso sair catando.
Já participou de algum prêmio, concurso literário ou algo do gênero?
Não, não participei e nem acho que teria chances, considerando o teor dos meus livros. Além disso, não sou o que se pode chamar de um sujeito competitivo. Colocar o ponto final em uma história é prêmio suficiente para mim. Por outro lado, soa irônico associar literatura a premiações de qualquer espécie. Se a pessoa se mete a escrever ficção, precisa entender que já perdeu o jogo há tempos. A derrota é inerente ao escritor.
Para concluir, quais são os seus futuros projetos literários?
Projetos? Impossível mencionar projetos em um ano como 2021, com dezenas de óbitos todos os dias. A cada nova morte, tenho a sensação de que a minha será a próxima. Seja como for, meu romance está aí para ser lido, ignorado ou depreciado. O que tenho a oferecer é apenas o presente. Bem ou mal, isso é tudo.
Link do livro:
https://www.editorapenalux.com.br/catalogo-titulo/morto-nada-me-faltara
Serviço:
MORTO, NADA ME FALTARÁ
Preço: R$ 45
Autor: Isaque de Moura
Projeto gráfico: Talita A.
Imagem da capa: Julia Soboleva.
Editora: Penalux
Páginas: 216 páginas