Disco Elysium: A subversão das histórias de detetive nos games

Disco Elysium é um RPG de computador que surpreende por, não apenas inovar na contação de histórias que envolvem crimes, detetives e personagens misteriosos, mas também, por trazer nas suas mecânicas e regras de jogo uma forma única de subverter o gênero, tanto do game quanto da narrativa.

 

 

Revisão: Joana Tainá

Um detetive, um crime e uma cidade misteriosa: são esses alguns dos elementos que funcionam como os pilares de uma narrativa policial, chegando até mesmo a serem clichês, então a princípio a premissa inicial de Disco Elysium, o jogo de 2019 do estúdio eslavo ZA/UM, é tão batida quanto qualquer outra obra narrativa desse gênero. Entretanto, e talvez seja aí onde a mágica acontece, o game subverte todas as expectativas possíveis a respeito de gênero narrativo e de mecânicas de gameplay, trazendo então um detetive alcóolatra e drogado com amnésia, um crime tão nebuloso quanto os personagens que o cercam e uma cidade tão minunciosamente bem desenvolvida, que você chega a pensar: Disco Elysium talvez seja a mescla perfeita das narrativas literárias e das de RPG, um jogo que te prende a partir de sua subversão em todos os níveis possíveis.

 

Disco Elysium pode ser facilmente encontrado na plataforma de jogos online Steam, para computadores e apenas futuramente nos consoles. Ele se trata de um Role Playing Game, ou mais comumente chamado de RPG, onde o jogador encarna o personagem em suas decisões e escolha de atributos, que definem as características físicas, motoras e psicológicas. Nesse jogo, vivemos na pele tumultuosa e confusa de alguém que, a princípio, não sabemos quem é, ou o que faz da vida. A tela inicial é uma conversa sua com o seu… Cérebro Reptiliano Ancestral, que é respondido pelo seu Sistema Límbico… Todas essas referências a partes do sistema neurológico do ser humano são confusas no inicio, mas ao despertar e após um tempo de investigação, você descobre que é um detetive, um daqueles insuportavelmente irresponsáveis, e que existe um crime para ser solucionado há mais ou menos uma semana, mas tudo o que você fez foi beber e usar drogas. Foi O Porre de Todos Os Porres.

 

Não muito tempo depois você encontra o seu parceiro, o detetive Kim Kitsuragi, que ciente de todos os seus erros e vacilos absurdos, é meio cético em relação ao seu estado de sobriedade. Juntos, você e Kim se debruçam por Revachol, em um distrito chamado Martinaise, lugar assolado pelo histórico de guerras e disputas políticas. Além de ter que solucionar um crime, o game ainda te faz ter que lidar com os personagens de opiniões políticas bem estabelecidas (o que não significa dizer que sejam boas ou não), e com as besteiras feitas pelas noites de porre do detetive, tudo isso sob um véu fantástico. Aos poucos o game, apresentando diálogos pontuais sobre temas sociopolíticos, políticos e de referências a sistema neurológico do ser humano, vai saindo de uma narrativa policial comum e toma um destaque que se sustenta a partir das mecânicas que são citadas a seguir.

Ao iniciarmos o jogo, somos apresentados a uma tela de escolha de arquétipos, onde como em um RPG qualquer, temos os tipos de habilidades e a quantidade de pontos que cada uma pode ter, de acordo com cada arquétipo, por exemplo, o “Pensador” tem muitos pontos de Inteligência, mas poucos de Físico, enquanto o “Sensível” tem muitos pontos em Psicológico e poucos de Inteligência, e, além disso, tem a opção do próprio jogador criar seu arquétipo, onde você redireciona seus pontos para qual atributo quiser.  Não surpreende tanto pois, de certa forma, o alicerce de um RPG é ter pontos para distribuir em atributos que constroem seu personagem, mas Disco Elysium vai além disso.

 

 

Os atributos que você escolhe influenciam no seu diálogo com os personagens e, por consequência, influenciam como a história anda, somado a isso, além do arquétipo inicial, durante todo o jogo você ainda tem acesso a sua Ficha de Personagem com mais 24 tipos de atributos ou pensamentos, para acrescentar ao seu personagem, atributos esses que variam entre Inteligência, Físico, Motora e Psicológica.

 À medida que as missões do jogo são feitas, você é recompensado com Pontos de Habilidade e, ao atingir os 100 pontos, fica disponível para escolha algum atributo da Ficha de Personagem. Pode escolher o atributo Drama, e saber quando as pessoas estão mentindo pra você, ou escolher Empatia e ter opções de diálogo que te façam entender os problemas de outros personagens, pode escolher Calafrios e, às vezes, sentir algo no seu corpo que dê dicas de como resolver algum impasse e até mesmo escolher Coordenação Motora e tomar decisões corporais ágeis em momentos específicos. E, o mais legal de tudo isso é que, todos esses 24 atributos, quando escolhidos, se tornam vozes da sua cabeça, cada um deles com uma personalidade e linhas de diálogo únicas que aparecem nas interações com os demais personagens e objetos do ambiente.

 

 

O diálogo do game, que é o seu grande pilar de sustentação, é gostoso em boa parte por causa da sua interação com as escolhas de habilidades do seu personagem. Se durante um interrogatório policial o jogador tiver muito atributo de Drama e Empatia, o game te dá opções de dialogo onde os atributos, simulando vozes da sua consciência, conversam com o jogador para dizer: “Ei, talvez ele esteja mentindo!”. Somado a isso existe também um sistema de rolamento de dados, que deixa o jogo com ainda mais possibilidades.

Esse sistema de rolamento de dados é comum em RPGs de Mesa, onde um Mestre de RPG joga dados para decidir o que acontece no mundo do jogo, acrescentando aleatoriedade na narrativa, algo que também existe em Disco Elysium, pois ainda que a voz do Drama na sua cabeça diga: “Ei, talvez ele esteja mentindo!”, o rolamento de dados pode fazer com que o jogador expresse isso de formas diferentes, as vezes boas, quando o rolamento de dados é feito com sucesso, ou as vezes ruins, mas nunca de uma forma punitiva, fazendo sempre o jogo andar.

 

Então, a partir da sua escolha de habilidades psico-moto-sensoriais e do rolamento de dados, o jogador pode interagir com tudo e todos, e todos os cantos, coisas e personagens da cidade são construídos para criar engajamento no jogador, para se sentir imerso como na leitura de um bom livro. O ato de se engajar na história é reforçado também pela aba de Conhecimentos, onde o jogador recebe incentivos para descobrir mais do universo sociopolítico do game e é recompensado com atributos na sua Ficha de Personagem.

O outro grande destaque de Disco Elysium se dá pelos temas que aborda. O estúdio ZA/UM que tem sua base em Londres, mas que tem como seu país de origem a Estonia, usa muito das experiências e dos medos de se viver nesse país, na construção da narrativa, da política e do mundo do game. De acordo com uma entrevista dada pelo produtor executivo do estúdio, Kaur Kender ao site gamesindustry.biz, viver na Estonia é viver na possibilidade de uma guerra ocorrer a qualquer momento, num sentimento de cautela constante, o que reforça o embasamento político dos cidadãos. E, no mundo de Disco Elysium, o que não falta é embasamento político dos personagens.

 No distrito de Martinaise, além do conflito envolvendo um crime ainda não resolvido, existe de forma adjacente um problema entre o Sindicato dos Estivadores e a empresa privada que os emprega. E, no desenvolvimento do mistério a respeito do crime, o jogador também tem que lidar com uma greve que está impedindo a passagem de alguns caminheiros, o que requer algum tipo de posicionamento. Os posicionamentos tomados levam em conta os seus atributos escolhidos e a rolagem de dados, mas, acima de tudo, fica na mão do jogador se ele quer ser visto como um extremo fascista, como um centrista dividido ou um comunista sonhador.

 

Além disso, existem os posicionamentos sensoriais e fantásticos, em missões secundárias e não obrigatórias onde o jogador tem que lidar com supostos fantasmas, animais fantásticos não catalogados, entre outros.

O jogo pede que o jogador dê sua opinião sobre a greve, se é a favor ou contra, se vai ajudar um grupo de antigrevistas ou não, se vai ajudar um líder sindicalista que mais parece um miliciano ou se vai ajudar a empresa que tão pouco parece ter um bom caráter, enfim, decisões vão ter que ser tomadas a respeito de temas como racismo, feminismo, homofobia, liberdade de expressão, e cabe ao jogador à escolha de como se posicionar a respeito disso.

As suas opções de dialogo vão variar bastante e, além disso, o jogo brinca com seus diálogos ao não tomar (pelo menos não explicitamente) uma forma política como certa. Se você tomar decisões de direita, o jogo vai tirar sarro de você, e se você tomar decisões de esquerda, isso também vai acontecer. É possível enxergar o contexto plural da política e vivência da Estonia presente no jogo quando se percebe que, acima de tudo, o game tenta ser crítico e cético, mas não como se os desenvolvedores quisessem apenas causar um sentimento ruim ao jogador por contestar suas escolhas, mas sim porque busca os fazer pensar a respeito delas.

A partir disso, dessa vasta possibilidade de linhas de diálogos, graças às variedades de atributos e suas interações, as rolagens de dados, somados a um texto que te engaja narrativamente a partir de sua densidade e diversidade, Disco Elysium usa de uma premissa clichê, mas que subverte de forma primorosa não só a forma da narrativa, mas também a forma de se jogar, sendo a melhor transposição de um RPG de Mesa para o ambiente virtual.

Com seu visual único que, com traços rebuscados, retratam também o rebuscamento da alma das pessoas de Martinaise, Disco Elysium te joga para dentro de uma história de crime, ao mesmo tempo em que te insere no contexto de uma cidade, e junto disso, coloca 24 vozes na sua cabeça, que te fazem pensar a cada decisão de diálogo tomada. Ao terminar, você só quer começar tudo de novo, pra saber o que poderia acontecer se tivesse tomado outra decisão, entrando num looping sem fim, numa cidade que te abraça.

Game: Disco Elysium

Desenvolvedores: ZA/UM Studios

Disponível em: PC, futuramente para Playstation 4, Playstation 5, XBOX Series S/X, XBOX One e Nintendo Switch.

Gênero: RPG

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