(DES)CONSTRUÇÃO, de Paulo Narley

Ilustração de Carlos César

Desde cedo, disseram-na menino. Antes mesmo de ela nascer, as paredes azuis do quarto já demarcavam que ali iria dormir um menino-homem. E o azul continuou perseguindo seu caminhar. A roupa que cobria seu corpo. As histórias que eram contadas.

Tudo lhe era controlado. Seus brinquedos. Seu sentar. Seu falar. Tudo era rodeado pelas expectativas de seus pais, que sempre quiseram ter um menino, e, “graças a Deus!”, agora o tinham.

Havia algo de errado. Sabia bem que não cabia ali: era pequeno demais. O corpo? O quarto? O mundo? Não sabia dizer. Apenas sentia o erro. Sentia, também, dores por todo o corpo. Suas coxas doíam. Seu abdômen doía. Seus peitos doíam. Tudo doía. Conforme os dias iam passando, as dores se tornavam sempre mais profundas e não cessavam.

Cresceu ouvindo o quão macho tinha de ser. E cada vez que ouvia os gritos de seu pai mandando que ela sentasse que nem homem, que falasse que nem homem, era como se duas mãos gigantes pegassem e apertassem e comprimissem e dobrassem seu corpo miúdo. Aos sete anos, ganhou uma “namoradinha”, uma amiga da escola. No entanto, seus pais nunca saberiam que o que realmente trancava os dois amigos por horas a fio no quarto não era nada relacionado a beijos na boca.

Já adolescente, olhava seu reflexo nu no espelho e não se reconhecia. Não gostava daquela coisa mole balançando para lá e para cá. Ficava ainda mais estranho quando aquilo se endurecia e apontava para a frente. Por que sentia isso? Por que essa sensação? Não entendia! Afinal, todos os seus amigos se vangloriavam de suas ereções. Todos exibiam os seus corpos moles uns para os outros com tamanho orgulho. Ela não! Se pudesse, arrancaria aquela parte de seu corpo.

Pecado, castigo de Deus, influência do meio social, fatores biológicos… não sabia explicar o motivo de se sentir daquela forma, mas sabia, desde sempre ela sabia, que não deveria estar ali, presa. Sim, era assim que se sentia sempre que se olhava no espelho, sempre que os pelos raspados constantemente, dia após dia, insistiam em crescer ao redor de seu rosto tão quadrado. Aos poucos, foi desenvolvendo pavor a aproximações. Era avessa a toques. As aulas de educação física eram sempre um terror. Odiava vestiários, banheiros públicos e qualquer ambiente que lembrasse a ela de sua condição de homem e do quão masculina deveria ser, mesmo que não quisesse.

Aos dezesseis anos, a fim de afirmar uma masculinidade que não lhe pertencia, arranjou uma namorada. E foi uma festa em casa quando o casal entrou pela porta da frente e subiu direto para o quarto. No dia seguinte, o pai glorificou aos céus quando a mãe encontrou um pacote de camisinhas próximo da cama, deixado de propósito ali.
Todos se mostravam muito contentes, exceto ela própria.

Como era de se esperar, o namoro não durou muito. Cada dia que passava, o tormento de não poder ser quem queria aumentava e tornava cada vez mais difícil caminhar pelas ruas.

E viveu assim, com dores diárias, por dezoito anos, até que tomou a decisão de sair de casa para cursar Letras. Arranjou trabalho para custear a própria vida. Com a entrada na universidade, veio a certeza de que não poderia mais viver trancada numa mentira.

Entrou Mário no curso e, quatro anos depois, saiu Joana, graduada e laureada em Letras-Português. Não fora fácil passar pela transição e ver o estranhamento, e até mesmo afastamento, de muitos colegas de curso e de trabalho. Porém, cada vez que seu corpo se modificava para encontrar a imagem que sempre vira no espelho, sentia que
tudo valia a pena.

Da graduação foi direto para mestrado e, depois, para o doutorado. Mesmo ali, no ambiente acadêmico, encontrou certo asco por sua presença. Tornou-se a primeira doutora transexual em Educação daquela universidade. Hoje, atua na proteção de crianças trans, levando informação para quem necessita e evitando que crianças como ela passem pelos trancamentos aos quais fora submetida.

Com o tempo, e com o desabrochar da mulher que sempre fora, sua disforia em relação ao órgão genital diminuiu, a ponto de ela adiar a cirurgia de redesignação sexual. Nem sempre é fácil conquistar espaços, Joana sabe disso. Precisou se afastar da família, que nunca a entendeu, para que pudesse alçar voos. Em alguns dias, a saudade de casa faz morada no fundo de seu peito, mas ela segue caminhando e vai de braços dados com a doçura e a leveza de ser quem realmente é.

 

Conto presente na obra “Cada roçar temeroso de olhos ou peles”, de Paulo Narley. Publicado pela Editora Nua.

Livro disponível no site:

https://loja.umlivro.com.br/Editora%20Nua

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