MEMÓRIA ALIMENTAR: EXCERTO DE UM MESTRADO*, por Valéria Lima

Imagem: Site G1-Globo

As lembranças da casa da vovó nos dias de domingo, com tantas vozes, correria da criançada, bolos de todo tipo com identificação piauiense, tais como bolo de goma, bolo de caroço (ou de farinha de goma), bolo de puba e bolo frito, além de sucos de caju e cajá, pães caseiros, conversas paralelas sobre a juventude dos mais velhos, risos, lágrimas, gritos, abraços. Enfim aqui estamos saudosos como os mais velhos de outrora. Saudosos de um passado de estrutura que já não se conserva mais com a mesma frequência de antes. As coisas mudaram, de certo, algumas para melhor, outras nem tanto, principalmente os momentos de reuniões familiares sem hora para acabar. Hoje o tempo como fala Lipovetsky (2004) tornou-se múltiplo. Temos horários para tudo e minimamente cronometrados minguando aqueles como o dos encontros sem hora para acabar na casa da vovó, nem mesmo o bolo com café da tarde é o mesmo, a sopa reconfortante na “janta” não é a mesma. Parece que a ‘comidinha da mamãe e da vovó’ feitas a partir de receitas salvaguardadas na memória por gerações que estão sendo substituídas pela comida rápida, pão (à moda da padaria) com carne compactada dentro, molho especial e “refri”. E às vezes aquelas batatas fritas parecem a melhor coisa do mundo, mas como não sentir saudades da comida caseira?

Imagem: Valéria Lima/ Cadernos de Receita

Hoje se fala demasiadamente em globalização, sociedade da informação, aldeia global, enfim, é defendido por alguns teóricos que a globalização é um fenômeno que existe desde as grandes navegações, que nas últimas décadas tem transformado seus interesses e modos de produção, atingido verdadeiramente uma escala global. Trata-se da expansão do sistema capitalista bem como de suas características produtivas, formas de gerenciamento, de cumulação de capital e de orientar as configurações culturais, por toda a sociedade ocidental, influenciando mesmo que indiretamente até os países do oriente que frequentemente entram em conflito para barrar as influências ocidentais.

Globaliza-se o sistema econômico e político, os modos de vida, o consumismo e as necessidades da população. Apesar dessa realidade este fenômeno não tem se mostrado muito coerente na prática, quanto ao seu objetivo homogeneizador, pois há lugares que se contrapõem resistindo qualquer remodelação em sua cultura. Com isso, surgem ações, não de destruir um processo que nos parece irreversível, mas de guardar por diversos meios aquilo que já nos pertenceu, que figurou acontecimentos importantes de nossa história que nos dão segurança e sentimento de pertença a um grupo social, a um lugar no mundo.

Esse movimento de salvaguardar a história do homem favoreceu ações como, por exemplo, a conservação e manutenção de estruturas antigas, a criação de arquivos públicos onde são guardados documentos que legitimam nossa história e museus. Muito do aparato material foi sendo priorizado em detrimento de heranças consideradas abstratas e subjetivas, fato que revela o pensar racional moderno. Contudo quando as sociedades percebem que o espírito racional não responde mais a todas as necessidades das pessoas, sobretudo com advento da Segunda Guerra Mundial como assevera Harvey (2010), tais heranças começam a ser valorizadas como patrimônio imaterial, seja da elite ou das pessoas consideradas comuns e que antes não detinham o poder de guardar e contar sua própria história de acordo com suas experiências.

No passado eram aqueles que vinham de outros lugares, a elite e posteriormente os especialistas, que contavam sob a sua ótica a história dos povos com todos os seus valores e costumes. Estes fatos eram descritos segundo o olhar ‘estrangeiro’ de quem realmente não fazia parte da cultura exposta, sem maiores explicações ou considerações de valores. Ou melhor, era apenas o “estrangeiro” que fazia história. Pode surgir aqui a seguinte pergunta: as gerações que nos antecederam não tinham memória? Sim, tinham, contudo, o registro dos fatos e fenômenos locais e sua valorização não ocorriam da mesma maneira que as estruturas físicas conservadas para visitas e observação dos visitantes. Realidade que na contemporaneidade, com a globalização supostamente homogeneizante, transforma-se. Mas de verdade, encontra-se circundada por uma complexidade que admite tanto aspectos homogeneizantes, quanto de reconhecimento das singularidades culturais. Nesse contexto o que se revela é que ao mesmo tempo em que há no período atual uma força homogeneizadora, existe por outro lado, movimentos de resistência cultural que ganham voz [pausa para café].

* Em meados de 2016 foi defendida minha dissertação de mestrado na Universidade do Vale do Itajaí, em Balneário Camboriú, Santa Catarina, a qual segue o link, também disponível na biblioteca virtual da universidade, a quem interessar pela cultura alimentar piauiense:
http://siaibib01.univali.br/pdf/Val%C3%A9ria%20Cristina%20Cunha%20Lima.pdf 

A mesma refere-se a um estudo em uma fazenda secular chamada “Trabalhado”, situada na zona rural de Campo Maior-Piauí, onde foi estudada a memória e patrimônio alimentar da cidade e desta fazenda.

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