Conforme dito anteriormente, fomos procurados, logo no início da pesquisa, por produtores cearenses que nos enviaram informações a respeito do médico farmacêutico e escritor Rodolfo Teófilo, reconhecido publicamente no Ceará como inventor da cajuína, na última década do século XIX. O Dr. Rodolfo Teófilo aplicou a técnica francesa de Appert (pasteurização por banho-maria) à bebida que era produzida na região (SOMBRA, 1997). Além de pasteurizar o produto, esterelizando-o, o tratamento carameliza o açúcar natural do suco clarificado do caju, conferindo-lhe o tom amarelado e – o mais importante – permitindo que seja armazenada por longo período. Com isso, a água do caju, ou o mocororó – como alguns produtores chamam o suco clarificado, límpido e transparente, antes de ser pasteurizado e tornado amarelo – se transforma no produto cajuína, um item de consumo, podendo ser armazenado por até dois anos e comercializado a longas distâncias.
Rodolfo Teófilo passou a comercializar seu novo produto, a que chamou inicialmente de Vinho Seco de Caju. Foi imitado por outros empreendedores locais, mudando o nome de seu produto para Néctar de Caju. Como foi novamente imitado, “tratou de criar um termo regional que ainda não figurasse no comércio e oficializou o registro. Aparecia, assim, pela primeira vez, a Cajuína” (SOMBRA, p 134). Tendo o Dr. Teófilo se destacado na vida política e cultural do Ceará através de seus romances sobre a seca no sertão e por sua luta em prol da vacinação e erradicação de doenças endêmicas, o seu papel como intelectual, promotor da ciência e inventor da cajuína é amplamente divulgado pelos órgãos da imprensa oficial daquele estado. A Casa de Rodolfo Teófilo, em Maracanaú, funciona como um museu e exibe os apetrechos do laboratório, um busto seu enfeita os jardins do Palácio da Cidade. Os portais de internet oficiais do governo contam sua história, imediatamente disponível para qualquer pesquisador ou jornalista que se interesse pela bebida. Desta forma, a informação se replica por veículos de informação de forma quase universal, atualmente.
No entanto, a informação surpreendeu os membros da equipe e a quase todos os entrevistados, mostrando que a cajuína é considerada como originária do Piauí mesmo por cearenses entrevistados em nível local, como a Dra. Júlia Geracilda, química radicada depois de adulta em Teresina, que, em sua infância em Fortaleza, só se lembra da cajuína trazida por seu pai do município de Esperantina (PI). Causou surpresa inclusive ao Sr. Osvaldo, nosso entrevistado, produtor de cajuína em Amarante, que, mesmo farmacêutico, por profissão, nunca havia ouvido falar em Rodolfo Teófilo. Embora se saiba que existe cajuína no Ceará, a noção generalizada entre nossos entrevistados piauienses é a de que não se trata da mesma bebida, pois existe um refrigerante gaseificado (marca São Geraldo) que se atribui o nome de cajuína. Segundo Dona Maria do Amparo, 65, que foi convidada pelo SENAI, na década de oitenta, a dar aulas de fabricação da cajuína em Pacajus, no Ceará, existem diferenças: Fiz uma excursão no SENAI para o Ceará… tive em Pacajus, num sabe? A gente foi pra dar alguma coisa pra eles e receber alguma coisa deles. Mas eu não gostei do método deles da cajuína… porque caía no vasilhame, naquelas coisas, na redinha, ainda nas redinhas! (admirada) que eles coavam a cajuína. Aí num vasilhame assim de cano, de flandres ou alumínio ou era zinco… aí vinha descendo ai pra cair em outro vasilhame. Achei aquilo tão… ocupando tanto espaço pra cair lá acolá para a outra pessoa que ainda estava (a) encher… eu chego a lembrar às vezes! Agora, na garrafa, eu boto um funil com um paninho […].
Suas observações indicam uma diferença bastante acentuada nas técnicas de fabricação entre os dois Estados, com maior simplificação nas técnicas piauienses. No entanto, existe a cajuína em abundância no Ceará, produzida com essa técnica levemente diferente da piauiense (uso de canos compridos). E em muito menor abundância, no Maranhão, associada à expansão das famílias piauienses pela região contígua ao Estado do Piauí. Nos foi reportado que a cajuína que existe no Rio Grande do Norte é muito diferente, não clarificada, mais parecida com o vinho de caju.
A favor da versão cearense encontramos a indicação, no artigo acima referido (SOMBRA), de que em 1912 o produto foi registrado como “cajuína na Junta Comercial de Fortaleza e os anúncios nos Almanaques da época, que incluem a informação de que o Dr. Rodolfo Teófilo ganhou uma medalha de ouro na Exposição Nacional de 1908, no Rio de Janeiro, por seu invento. Contra a versão, temos algumas interpretações especulativas: a de que ele pode ter registrado o nome de um produto regional que já existia. O original apresenta incongruência – vide o texto literal: “tratou de criar um termo regional que ainda não figurasse no comércio” (tratava-se de um termo regional que ainda não figurava; como poderia tê-lo criado?) – a de que o espírito altamente empreendedor dos cearenses pode tê-lo induzido a se apropriar de uma técnica antiga (apesar de Rodolfo Teófilo ser baiano e de ter em seu currículo diversos atos de notório altruísmo, como a luta pela erradicação da varíola na região); finalmente, o argumento de que o suco de caju clarificado parece – como o mocororó – ser oriundo dos índios, cujos alguidares feitos do cajueiro já continham na resina natural da madeira, o primeiro produto químico utilizado para “cortar” (talhar, precipitar o tanino) o suco do caju, que seria filtrado em seguida. Existem inclusive registros do cozimento do suco de caju em vasos lacrados por indígenas, conforme veremos adiante.
Não obstante essas defesas especulativas da origem piauiense, nada em nossa pesquisa nega a possibilidade da técnica de pasteurização da bebida, pelo método de Appert, ter sido de fato aplicada ao suco clarificado do caju na forma de uma “inovação” (mais do que uma invenção), por Rodolfo Teófilo no Ceará, nas datas indicadas. Além da ausência na literatura memorialista e regionalista piauiense – que examinamos tanto na virada do século em Abdias Neves, ou nos outros autores que investigam a vida social de Teresina – temos indícios na história oral levantada até o momento que remetem à introdução da cajuína na região em torno do final da década de 1920 e início da década de 1930. Colecionamos relatos nos quais as produtoras afirmam, por exemplo, terem aprendido a fazer a cajuína através de “um livrinho de receita que meu marido trouxe do Ceará”; e também ter conhecido a cajuína através de caminhoneiros que vinham do Ceará. Outro relato é de uma senhora, já falecida, que foi proprietária da fábrica em Barras do Maratoã; residira no Ceará na adolescência, antes de retornar à terra natal e iniciar a fabricação. A família de D. Marica Veloso, de Valença, a considera pioneira da cajuína no Piauí e oferece como prova um rótulo impresso na década de 1930. Além de o mencionado rótulo ter sido impresso em Fortaleza, a entrevista revelou que o marido desta senhora era um comerciante que viajava constantemente para o Ceará, onde pode ter se familiarizado com a bebida.
Fonte: “PRODUÇÃO ARTESANAL E PRÁTICAS SOCIOCULTURAIS ASSOCIADAS À CAJUÍNA NO PIAUÍ”(pág. 19)
http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/87
Coordenadora da pesquisa: May Waddington Telles Ribeiro
Arte: Letícia Rocha