O que não te contaram sobre a água, por Lucas Coelho Pereira

(Pra ler ao som de: “Kitchen” – The Marian Circle Drum Brigade https://www.youtube.com/watch?v=Q8rGqTu7PFQ)

Quiabo-boy, malandro experimentado. Corpo de baba. Saiu da beira do rio direto pro asfalto. Viscoso, não quis conversa com a lama, tampouco deu trela pra abóbora distraída ao seu lado. Era a segunda vez que caia longe do pé, contrariando o ditado e as expectativas do pai-quiabeiro. Cansado do movimento eterno da água enchendo, vazando, molhando a terra, renovando tudo pra que o amanhã fosse (de novo) o mesmo ontem. Ultraconservadora. A raiva das coisas molhadas lhe fizera pegar carona no bico de um pombo – invernos passados. Mas aí retornara como semente e, agora, quiabo crescido, decidiu entrar para o clube de usuários de agro-fertilizantes.

Ele sabia do perigo do esquema. “Caminho sem volta”, “essas coisas destroem a gente”, “o bem-te-vi morreu, tu tá ligado, né?”, “dá uma sede danada, cara”.  Nada disso lhe assombrava, era um jovem de convicções fortes, apesar de toda água que corria por suas células e lhe turvava os pensamentos. A água, sempre ela! Fazendo-se de coitada, lacrimosa, fleumática, chantageando emocionalmente os viventes. Até pouco tempo era dela o monopólio da fertilidade. Em troca, todo o plantio estava sujeito ao tédio dos seus ciclos repetitivos, odientos, necessários. Quiabo-boy queria o entorpecimento de drogas pesadas. Sentir a embriaguez do Anun ao comer o feijão com veneno da roça vizinha. Foi ele, inclusive, quem lhe recebera na porta do clube.

– Mano do céu, foi por um triz! Toma aí. Tava muito louco quando peguei essa  tampinha do bagulho. Quase não consegui desviar das baladeira dos moleque, uma pedra passou de raspão na minha asa… Repara aqui se feriu, bicho?

            O cheiro ácido dominava o espaço feito fumaça… Só de se misturar com aqueles vapores Quiabo-boy se sentia entorpecer. Ao mesmo tempo um vigor repentino tomava conta de cada semente, sua pele verde ficava ouriçada, sua baba parecia querer  escorrer a cada segundo. “Hummm, tá gostando, né?”. Anun era um inconveniente, atrapalhava seu estado de flow… “Flow”, palavra que aprendeu com um amigo hippie, loiro, de dread, o milho. Num lapso lembrou do que não queria: “flow, fluxo, imersão, mergulho, água!”. Merda! Água?! Sério?! Comparação pobre e desagradável.

            – Anun, vê mais uma tampinha aí, beleza?

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