Por João Luiz Rocha do Nascimento
Estamos em regime de quarentena, isolamento e distanciamento social há quase 120 dias e não sabemos exatamente como e quando sairemos dele, mesmo porque a experiência tem demonstrado que alguns ensaios nesse sentido resultaram frustrados, com o imediato retorno às regras mais rígidas.
Diz-se que quando tudo acabar nada será como antes. Desde cedo aprendemos que o tempo tem três dimensões: passado, presente e futuro. Representam, por assim dizer, a fisiologia, a arqueologia do tempo.
Nessa perspectiva de dimensões do tempo, em circunstâncias normais, o presente não passa de um instante fugidio entre o passado e o futuro, uma espécie de, metaforicamente falando, abismo ou vácuo a ser preenchido entre aquilo que não é, mas que será, e o que não é mais porque já passou. Algo parecido com o que diz Wislawa Szynborska (2011), escritora polaca, no poema “As três palavras mais estranhas”: “Quando pronuncio a palavra Futuro a primeira sílaba já se perde no passado”.
Dentro dessa lógica, é até comum sermos assombrados por um passado que não passa. Todavia, se examinarmos a atual crise sanitária na perspectiva da relação pandemia/tempo, é possível se perceber que, hoje, algo muito estranho está acontecendo, o que tem provocado uma alteração na fisiologia de que falamos acima, uma disfunção de suas dimensões ou pelo menos de uma delas. Não sei se isso ocorre, talvez sim, com outras pessoas, mas a sensação é a de que o tempo não passa, como se ele tivesse sido congelado num presente que se prolonga indefinidamente.
Tem sido muito comum ouvirmos as pessoas falarem que devemos esquecer o mundo anterior à pandemia, que ele nunca mais será o mesmo. No limite, corremos até mesmo o risco de perder a possibilidade de acessar nossas memórias. De igual modo, parece que estamos proibidos de fazer qualquer projeto, pois, embora se fale que depois da pandemia haverá um “novo normal”, não sabemos e nem saberemos exatamente o que é ou como será esse normal, nem quando chegará, se é que virá, sobretudo se analisada a questão a partir da suposição de nunca houve um normal antes da pandemia.
Em síntese: a sensação é de que, ao mesmo tempo, nossa passagem em direção ao passado e ao futuro foi bloqueada. Dito de outro modo: não temos acesso às nossas memórias e estamos proibidos de fazer qualquer projeto.
Tudo isso lembra Cronos, o deus do tempo da mitologia grega, cuja história, segundo François Ost (2005), é a história da negação do tempo.
Segundo a mitologia grega, e aqui se contextualiza para quem não conhece a história, se o céu e a terra hoje são separados, isso se deve a Cronos, que era filho de Urano, o deus que personificava o céu, e de Gaia, a deusa que personificava a terra.
A mitologia conta que eles viviam constantemente enlaçados, num abraço eterno, até que Gaia, cansada do abuso de Urano, armou Cronos, 12º filho, e então o mais novo, com um machado com o qual decepou os testículos do pai, acabando com o abraço infinito.
Se a mutilação de Urano, por um lado, representa a libertação de Gaia, a separação do céu da terra, por outro, dá origem a um problema: depois de mutilar o pai, Cronos toma-lhe o lugar, dá início ao seu reinado e se torna um tirano.
Alertado de que teria a mesma sorte do destino do pai, sendo também destronado por um filho, para se proteger contra a profecia, Cronos engolia, tão logo nascidos, os filhos gerados com Reia, sua mulher, menos Zeus, que escapou graças à mãe que o escondeu em uma gruta e, no seu lugar, deu uma pedra enrolada num manto para o marido engolir. A profecia, contudo, mais tarde se confirma. Ao atingir a idade adulta, Zeus retorna, destrona o pai, assume o seu lugar e o condena ao Tártaro, uma espécie de inferno dos deuses. O resto da história é conhecido. Segue-se um longo reinado de Zeus.
Trata-se, pois, com bem pontuou François Ost (2005), da história da negação do tempo. Ao decepar os órgãos genitais do pai, Cronos bloqueia a passagem em direção ao passado, assim como em relação ao futuro, ao engolir os próprios filhos. Diz Ost (2005, p. 10): “Cortar os genitais de seu pai e negar o peso do passado, é privá-lo de qualquer prolongamento possível; engolir seus próprios filhos e fazê-los regressar a uma posição uterina, é privar o porvir, desta vez, de qualquer desenvolvimento futuro”. Moral da história: o tempo de Cronos, como é típico de qualquer tirano, desde sempre, esgota-se num presente estéril, sem memória e sem projeto.
Algo parecido com o que estamos vivendo, fenômeno pelo qual as sociedades organizadas estão passando agora em todo o mundo, sobretudo em países tardios como o Brasil, que se ressente da ausência de uma direção na condução e no enfrentamento do problema. Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, perdemo-nos em discussões em torno de dualidades metafísicas, a exemplo daquela que separa vida e economia, e aquela que trata a pandemia como fenômeno da natureza ou decorrente de atos do homem, cultural, portanto.
Para o professor Andityas Soares de Moura Costa Matos (2020), essa discussão não tem sentido. Não se trata de saber se o fenômeno é natural ou cultural, pois ele tem as duas configurações. De igual modo, não tem sentido insistir na discussão acerca do que deve ser priorizado, se a vida ou a economia, uma vez que isso somente encobre um problema maior, que é mais comportamental e de mentalidade, enfim, é existencial, de forma de vida mesmo.
Para Matos (2020) em artigo publicado no Portal do Instituto Humanista Unisinos, em 18 abril de 2020, somente uma mudança radical na forma de nossas vidas “poderá garantir a vitória sobre a pandemia, dado que ele não é algo isolado, mas, sim, um perfeito exemplo do nível de complexidade a que chegamos. Qualquer ação que privilegie apenas um dos lados do problema, natural ou cultural, está fadada ao fracasso”.
Para além disso, se não bastassem essas discussões duais, que mais revelam que ainda estamos presos aos paradigmas filosóficos da metafísica clássica, no Brasil o problema pandêmico é agravado por outra crise.
De fato, diferentemente dos outros países, que enfrentam somente duas crises, uma sanitária e outra econômico-social, no Brasil há uma terceira. A referência, por óbvio, é a uma crise política sem precedentes, que, numa certa medida, só contribui para agudizar as duas primeiras.
A pergunta que fazemos é a seguinte: precisávamos chegar a esse estado de coisa, gastar tanta energia quando o principal problema é a pandemia, que não faz escolhas na hora de matar, embora se saiba, por razões que, muito provavelmente, até os minerais saibam, que quem mais morre são os desassistidos, os invisíveis, os mais frágeis e os mais precarizados, que sequer podem se dar ao luxo de viver em um confinamento rigoroso?
Em trecho do poema “Mãos dadas”, Carlos Drummond de Andrade (2012) diz: “Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. (…) O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes. A vida presente”.
Assim, diante desse tempo presente parado por força de atos e omissões dos homens, fica aqui uma reflexão final e ela passa por saber se a pandemia que abate sobre os homens desse mundo e a quarentena a que estão sujeitos grande parte deles não seriam os efeitos de uma espécie de maldição de Cronos que caiu sobre todos, sobre uma humanidade que nunca realizou o sonho do poeta.
Referências bibliográficas:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. A pandemia da Covid-19: entre Gaia e o Antropoceno. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/598174-a-pandemia-da-covid-19-entre-gaia-e-o-antropoceno-artigo-de-andityas-soares-de-moura-costa-matos. Acesso em: 3/7/2020.
OST, François. O tempo do direito. Bauru: Edusc, 2005.
SZIMBORSKA, Wislawa. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 201l.
Sobre o autor
João Luiz Rocha do Nascimento é juiz do Trabalho do TRT-22, mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos. Professor da Uespi e contista, autor de “Um clarão dentro da noite”