Segundo o Dicionário do Folclore Brasileiro, a lenda da Num-se-pode surge no Piauí na praça Conselheiro Saraiva (antiga das Dores) e é um fantasma feminino que aparecia frequentemente aos notívagos que andavam pelas ruas. A Num-se-pode começou a aparecer com o surgimento dos lampiões de gás que passaram a iluminar as ruas e ela se materializava para os soldados de ronda que patrulhavam a cidade e boêmios. A lenda é descrita como uma mulher esguia, rosto comprido, olheiras fundas e ar de tristeza. No Dicionário a lenda tem semelhanças com uma outra lenda que se manifesta em outros países e em outras regiões do Brasil, essa outra lenda se chama “Cresce-Míngua” e já aparecia para os africanos que viviam no país no final do século XIX e início do século XX, eles a chamavam de Gunucô (ver), pois ela aparecia no bamburral, esticando-se até ficar do tamanho de um coqueiro e depois minguando. (Dicionário do Folclore Brasileiro, Câmara Cascudo, Editora: Global, pag: 415.)
A personagem do folclore teresinense “Num-se-pode” já foi a inspiração para diversos artistas e estudada como manifestação da cultura popular. A lenda aparece neste trecho da Tese do pesquisador Raimundo Nonato Lima dos Santos, que destrincha uma das músicas do Grupo Candeia:
“A música “Num-se-pode”, composta por Zé Rodrigues e Rubeni Miranda refere-se a uma das lendas urbanas de Teresina, ambientada no início do século XX, período em que a iluminação pública era constituída por postes com lampião a gás 39
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Num-se-pode
À meia-noite, sem ser lobisomem
Num-Se-Pode é assombração
Ela me pede um cigarro sorrindo
Como quem quer pegar na minha mão
Ela me pede o meu fogo sorrindo
Mas eu não quero aproximação
No pé do poste é moça bonita
Mas se estica até o lampião
Assusta até os cabra macho do sertão
Assusta até os cabra macho do sertão
Num-Se-Pode pode ser que seja
Uma donzela de bom coração
Num-Se-Pode pode ser que seja
Desencantada por uma paixão
Num-Se-Pode pode ser que seja
Talvez a dona do meu coração. (GRUPO CANDEIA, 1986)
Essa lenda conta a história de uma linda mulher (“No pé do poste é moça bonita”) que, tarde da noite (“À meia-noite, sem ser lobisomem”), aparecia na Praça Saraiva (ou poderia ser qualquer outra praça da cidade) ostentando sua beleza debaixo de um dos lampiões ali existentes. Movidos pela surpresa daquela bela aparição, uma vez que as moças de família não poderiam andar desacompanhadas tarde da noite 40, os homens se aproximavam para conversar ou, quem sabe, aventurar mais uma conquista com aquela donzela perdida (“Num-Se-Pode pode ser que seja / Uma donzela de bom coração”) ou mesmo uma nova prostituta que estaria fora da zona do meretrício da Rua Paissandu 41. Ao chegarem perto, a linda mulher pedia-lhes um cigarro (“Ela me pede um cigarro sorrindo / Como quem quer pegar na minha mão”), e quando recebia começava a crescer, até atingir o topo do lampião de gás e nele acender o cigarro (“Mas se estica até o lampião”). Enquanto crescia, ela repetia uma ladainha assombrosa: “num-sepode, num-se-pode, num-se-pode…” Aquele alongamento sobrenatural do corpo assustava todos os homens, até os tidos como valentes (“Assusta até os cabra macho do sertão”) e, por isso, na versão musical do Grupo Candeia, o narrador personagem confessa que estava se envolvendo naquele jogo sedutor (“Ela me pede o meu fogo sorrindo”), mas percebeu que aquela mulher era muito diferente das outras, que não poderia estar viva (“Num-Se-Pode é assombração”), daí porque ele se constrange com sua temeridade, que não condizia com a virilidade masculina da época 42, mas prefere manter sua integridade física (“Mas eu não quero aproximação”). Apesar da dramaticidade trágica dessa lenda, onde homens poderiam literalmente morrer de susto com o alongamento sobrenatural do corpo da jovem Num-se-pode, o Grupo Candeia influenciado por seus estudos de música modal medieval, resolveu dar um final possivelmente feliz a essa história. Isto é, imbuídos nas histórias de reis, rainhas, príncipes, princesas, bruxas e encantamentos, eles sugeriram que Num-se-pode poderia estar agindo daquela forma por causa de alguma maldição. Portanto, ela poderia ser vítima e não vilã. Assim, caberia a um “príncipe encantado” salvá-la daquele terrível destino por meio de um amor sincero (“Num-Se-Pode pode ser que seja / Desencantada por uma paixão”), que também poderia ser a salvação deste “príncipe”, pois naquela assombração estaria escondida a mulher de sua vida (“Num-Se-Pode pode ser que seja / Talvez a dona do meu coração”).
Notas de Rodapé:
39 Para maiores informações sobre o cotidiano urbano e o processo de urbanização e modernização de Teresina do final do século XIX e começo do século XX confira os estudos de Maria Mafalda Baldoino de Araújo (2010) – no livro “Cotidiano e pobreza” – e de Teresinha Queiroz (2011) – no livro “Os literatos e a República”.
40 Para maiores informações sobre a condição feminina nas primeiras décadas do século XX em Teresina confira os estudos de Pedro Vilarinho Castelo Branco (2005) no livro “Mulheres plurais: a condição feminina na Primeira República”. Nesse estudo ele analisa três aspectos do cotidiano feminino teresinense – o lazer, a educação e o trabalho – apontando as conquistas das mulheres e suas limitações naquele ambiente social.
41 Para maiores informações sobre os prazeres da noite nos territórios de prostituição de Teresina nas décadas de 1930 a 1970 confira os estudos de Bernardo Pereira de Sá Filho (2008) – no texto “Retrato dos corpos pérfidos” – que discute as tensas relações sociais nos prostíbulos, suas precárias condições sanitárias e o limitado conhecimento de cuidados que poderiam evitar e/ou tratar doenças sexualmente transmissíveis, conhecidas na época como as “doenças do mundo”.
42 Para maiores informações sobre a condição masculina nas primeiras décadas do século XX em Teresina confira os estudos de Pedro Vilarinho Castelo Branco (2008) no livro “História e Masculinidades: a prática escriturística dos literatos e as vivências masculinas no início do século XX”. Nesse livro, o autor discute o comportamento masculino predominante – exposição explícita de virilidade, macheza, força, valentia, disposição para o trabalho, ente outros – em paralelo com outras formas modernas de relações de gênero que lentamente eram empreendidas pelos literatos piauienses.”
SANTOS,Raimundo N. L. dos, PRATICANDO ESPAÇOS, ENTRE ACORDES, LETRAS E MÁSCARAS: História, memória e sociabilidades em espaços culturais de Teresina nas décadas de 1980 e 1990. Pag 95