A cidade provinciana ribeirinha, cuja história camufla o abandono e isolamento político e social dos primeiros acampamentos humanos, foi erguida entre os rios Poti e Parnaíba. Naquelas terras chamuscadas por relâmpagos, carinhosamente apelidada de Chapada do Corisco emerge esta estória.
Desde a transferência da capital para Teres-ina o pensamento de ‘mudernidade’ emprenhou-se na mente daquele povo, que ambicionava fazer do pequeno brejo, assolado pelas enchentes, um lugar próspero. A insalubridade foi o que sustentou a mudança de lugar e que contrariou os antigos moradores da vila velha, já enraizados naquele chão alagadiço.
Imerso nesse contexto, somente em 1882 as ruas foram embebecidas por lampiões de querosene, embora já existissem ensaios de iluminação pública anteriormente, mas em escala inferior.
Em vez de colunas de ferro usaram oitenta barrotes de aroeira para colocar os lampiões que tinham faces de vidro e no seu interior uma lamparina com querosene. Eles eram acesos às dezoito horas e apagados às cinco da manhã.
Pouco antes das dezoito horas uma movimentação limpava as ruas e a cidade ganhava novos protagonistas, era o movimento de esvaziamento das praças e estabelecimentos gerado pelo medo das ferinas línguas. O que pouco se dizia era que as mulheres ditas de família eram as únicas com restrições quanto ao horário. Ninguém puniria fisicamente as subversivas, pelo menos não abertamente, pois os ataques maculavam a moral e a imagem da vítima dos falatórios gerando feridas sociais que danificavam até a performance das mulheres atingidas pelo ultraje nos grandes salões.
No espaço público dessa cidade surge a lenda da Num-se-Pode, uma mulher trajada com vestes brancas que ficava sob a luz do lampião da Praça Conselheiro Saraiva até que algum transeunte passasse pelo local e se deparasse com a mulher, uma cena extraordinária naquele cenário cercado de proibições. A mulher pedia aos andarilhos da noite um cigarro e seu corpo começava a esticar até ficar do tamanho dos lampiões. Então ela acendia o cigarro na chama do lampião e repetia a frase que se transformou na sua alcunha: Num-se-Pode! Num-se-Pode! Num-se-Pode!
A mulher que se agigantava assombrando a estrutura patriarcal e que rompia com as interdições surgindo com o acender dos lampiões, subvertia a esfera do que era considerado público. Isso porque ela não se restringia ao ambiente privado e doméstico. Após a sua aparição ela desaparecia nas curvas da vida rindo daquela moral falida.
Dizem que a tal lenda, que também chegou a aparecer lá pras bandas de Oeiras, foi considerada a primeira lenda do repertório da nova capital. Contudo a tal assombração desagradava certa elite que precisava manter os bons costumes e reforçar os valores morais. Portanto, num ato de total selvageria ao imaginário popular, a lenda foi soterrada e abafada. E na tentativa de ofuscar a Num-e-Pode, mulher forte que amedrontava os homens, alguns donos da moral e dos bons costumes começaram a abrir espaço para uma outra lenda, a lenda do Crispim.
A rua foi o espaço absurdo que elegeu o ato inimaginável e desviante de uma sociedade tecida pelas malhas do machismo. E lá no espaço proibido o corpo da ultrajadora apunhala o patriarcado que, materializado na figura masculina, fugia desesperadamente da mulher. A tentativa de reprimir a sexualidade e as liberdades é um elemento presente, entretanto disfarçado, que aparece nas camadas da lenda. E a única negativa que ecoa da fala da personagem sai em tom de deboche, com risadas que desafiam a própria noção de terror.
Esta é uma obra de ficção.