Nalgum ninho trocado, um ganso usurpou o lugar de um pato. Tal qual o cuco teria feito, um ovo rolou pelo terreiro.
E o pato, desprivilegiado, eclodiu, por acidente, entre os majestosos pássaros.
Pedaços do tempo, fragmentos da casca de ovo espalhados sobre a grama, o corpo inerte sobre a lama. Era um feto amorfo, exótico, raquítico jogado no terreiro. Deixou o passado dentro de um ovo forasteiro. Todos os orixás emudeceram. Uma criança totalmente deformada. A gansa correu atrás do recém-nascido desesperada, mas o filhote era rápido, estranho, o alienígena daquela ninhada.
A estranha cria mal sabia se comunicar, grasnava um idioma exótico, bem particular. Por isso, o gansinho engoliu-se inteiro já que ali os seus ruídos indecifráveis eram insuportáveis, de um agudo que martelava a cabeça durante o verão braseiro.
Rejeitado pelo clã ele se emburacou no terreiro até descobrir uma brecha no mundo. E lá, na solidão de um divã, percebeu o significado da palavra s-a-í-d-a naquela estranha não-vida de apartação. Perdeu-se e fez da estrada a sua casa até descobrir que nunca fora ganso e sim uma pata.
As passadas desastradas tornaram-se um desfile elegante na passarela da mata. Distante da antiga tribo a, agora pata, deixou de lado a febre terçã. Cantou, como quem descobre seus próprios elãs, umas estranhas cantigas sussurradas nas trilhas pelas suas guardiãs.
As penas deixadas no caminho foram o início do estranho rito. Trocou de pele como quem desveste dos demônios rasteiros, os espíritos traiçoeiros. E sob o manto lunar sentiu a brisa e seguiu as ventosas do ar.
Já certa de si, mesmo com as suas aspirações e grandezas, a pata olhou para trás. Não entendeu que progredir era deixar seu pretérito ganso na carapaça de prantos de uma vida que se esvai. Fechou os olhos marinhos, rebentados de chuvas, e com o rosto lacrimejante cortou as raízes estanques. Foi quando abriu as asas vibrantes e diluiu-se na neblina milenar.
Protegida pelos espíritos guerreiros, aliados no aperreio, esquivou-se dos predadores do mundo sorrateiramente.
E, enquanto planava, virou morcego e enfrentou a tempestade de desespero. Desprender-se deu um pouco de medo, mas depois veio a saudade travestida de cegonha, por fim transformou-se em garça cicatrizada e floresceu em risos. Suspirou mais leve, abraçando a brisa de neve. Suas asas pesaram e ela caiu no terreiro dalgum lugar carnavalesco em brados de prece. Levou vida, despertando graça nos fios do Velho Monge. Ali, entre os atabaques e agogôs, ela fez o seu primeiro ninho e descansou na Pasárgada que sozinha garimpou.