Mais uma estrela riscou os céus naquela noite. Os três curumins agarravam-se aos trapos deixados – na madrugada anterior – pelo pai. Um silêncio agoniante reinava no matagal e qualquer um crescido naquelas terras sabia bem o perigo que significava o excesso de silêncio.
Os mais velhos bradavam diante das fogueiras alertando que os animais se calam para evitar o bote do predador e que o próprio predador silencia para predar a vítima, o resultado era o silêncio das partes.
<Se você escuta o ruído e não está caçando, prepare-se, você é a presa e será caçado>
Vinte e nove estrelas ainda estavam grudadas na abóboda celeste – segundo a contagem da pequena Maria. Qual era a linha usada para costurar aquelas esferas brilhosas no céu, questionavam-se os pequenos.
Enquanto aguardavam o retorno do pai, os meninos brincavam de fazer tranças nos cachos da irmã e ela tentava contar a quantidade de coisas que achava pelo caminho, como por exemplo a periodicidade dos ruídos emitidos por algo no matagal. Fazia um bem danado entrançar os cachos, era parte do ritual ensinado pela mãe nos anos anteriores, mas – excepcionalmente naquele momento – foi a forma encontrada para evitar a insanidade e o desespero.
Aquele abril se tornou um mês bem amargo, um fatídico fragmento do ano que tirou da família os abraços maternos. Maria lembrou-se da noite que escutaram os barulhos ensurdecedores e o fogo engolindo as casas. As chamas devoraram tudo e junto com o fogo chegou uma gente estranha, um pessoal com cheiro estranho. O odor impregnou a mata, eles traziam a morte.
Os avós dos avós dos pequenos instalaram-se no lugar há tanto tempo que as suas intervenções ficaram gravadas nos anéis de crescimento das próprias árvores, mas depois dos barulhos e daquela lama vermelha banhando o quilombo, toda ancestralidade foi contestada.
Maria viu de longe a mão pálida erguendo um papel com caracteres incompreensíveis que causava o pranto das mulheres e a gritaria dos homens. A folha úmida vomitava litros de sangue, as assinaturas emitiam os gritos do povo do mato e afirmavam que os desconhecidos eram proprietários do lugar.
“Proprietários”, ela repetiu mentalmente. Até aquele dia nunca tinha pensado em apoderar-se de algo para si mesma, eram todos uma coletividade, tudo era de todos. Sua existência era entrelaçada, ela era parte do todo, era a sua família e a sua comunidade.
Desde então Maria passou a ter pesadelos e revivia as lembranças ruins nas noites silenciosas, o cheiro estranho transbordava das ruínas do trauma, o cheiro da pólvora. Ela podia ver nos seus sonhos a cena em câmera lenta da fenda se abrindo no peito da mãe e quando tentou acordá-la, em vão, antes de ser jogada para fora da casa.
O pai catou os três filhos, carregando os pequenos no braço, cintura e ombro, embrenhou-se nos matos aproveitando o caos da invasão e desapareceu. Esse foi o dia que o grupo dispersou-se. Maria viu a casa diminuir de tamanho enquanto o pai corria. Sempre que o silêncio reinava lembrava-se da calmaria que precedeu o ataque.
Vinte e nove estrelas naquela madrugada de abril, recontou tentando ignorar o ruído que aproximava-se. O irmão menor engoliu com muito cuidado a própria saliva, os três abraçaram-se com força. Era a melhor estratégia e eles sabiam disso, pois aprenderam com o próprio pai as técnicas da caça. Mover-se só revelaria a sua localização.
Há mais de um dia o pai acordou os filhos, fez um gesto sinalizando silêncio e apontou na direção da estrela mais brilhante. Beijou os três e correu enquanto cantava uma canção de roda para tentar acalmar os filhos e atrair seja lá o que estivesse perseguindo a família. A voz paterna foi diminuindo até ser bruscamente calada.
A fonte do ruído estava bem próxima. Maria tocou no rosto dos dois irmãos e riu com calma para tranquiliza-los. Apontou para a estrela mais brilhante e tentou gesticular ordenando que quando desse o sinal eles corressem na direção do astro.
As lágrimas lavaram os rostos dos três irmãos. Maria ergueu-se mesmo com as súplicas silenciosas dos dois consanguíneos, coletou uma pedra do chão e lançou o mais longe que pôde. Beijou os irmãos e correu na escuridão do matagal quebrando gradualmente os fios familiares que ainda estavam embaraçados e fazendo com que a fonte do ruído a seguisse. Depois de alguns minutos ela começou a cantar uma cantiga antiga, passada pelo ancião do grupo e repetida nas noites frias.
Os meninos, obedientes, correram sem olhar para trás contando mentalmente os segundos, enquanto seus corpos líquidos de lágrimas ensopavam o solo. Os pés dos pequenos afundavam gradativamente na lama, a escuridão encobria os pequenos, o desespero camuflava a respiração ofegante e as raízes trataram de beber a esperança das crianças. Os pequenos misturaram-se ao lamaçal, seus braços tentaram alcançar os céus e suas pernas foram soterradas pelo medo.
Antes de ser tragado para as profundezas do lodo do esquecimento um deles avistou, bem próximo ao seu rosto, uma tábua envelhecida que tinha, dentro de uma de suas fendas, uma pequena plantinha crescendo. O pequeno fechou os olhos úmidos e solfejou a sua última canção.
A lama se enrijeceu com o calor, o tempo silenciou os gritos e a argila árida serviu para a fabricação das telhas chorosas esculpidas nas coxas dos antigos colegas, agora escravizados pelos novos proprietários daquela terra, os donos da Fazenda Cabeceiras.
Duas cidades no Piauí:Barras do Marataoan e Cabeceiras,compartilham da mesma história,até pelo fato de que a primeira teve emancipação em um passado não tão distante,os resquícios históricos desses lugares merecem serem descobertos por todos aqueles apaixonados pela ancestralidade do nosso precioso estado e de seus municípios,revelando uma destreza muito grande(algo corriqueiro em seus textos)o autor transmite ao público cenas iniciais de um filme de horror da vida real que foi a colonização daquele local,onde cortar orelhas de índio e queimar cabanas era prática mais que comum,fica registrado o meu desejo de que grupos como a geléia total conheçam essas e tantas outras histórias do interior do estado,histórias não só de abusos e tragédias,mas também histórias de vida de um povo que resiste na adversidade
Maravilhoso site. Sou paulista, morando em Brasília há anos. Admirador de poesia e do Brasil. Parabéns pelo site. Parabéns s pelo Piauí. Linda revista. Continuem…