As lentes dos óculos de Odineide estavam visivelmente raladas, ninguém entendia muito bem porque ela mantinha o hábito de limpá-lo a cada meia hora, talvez fosse um TOC. Quando questionada ela emitia um barulho com a boca e entortava os lábios demonstrando o seu desdém com a pergunta. A professora do jardim de infância tinha os cabelos grisalhos, um corpo esquálido e uma barriga desproporcional à sua magreza. Ela estava há oito meses esperando o seu segundo filho e acariciava aquela barriga mais com ódio do que com paixão.
Não que Odineide odiasse crianças, mas naqueles dois últimos anos ter assumido a turma das crianças mais velhas (do quarto ao oitavo ano do ensino fundamental) despertou-lhe emoções antagônicas. Todo santo dia, no horário próximo ao almoço ela tinha que fingir que estava dando aulas para aqueles pirralhos. Ela usou a sua pedagogia para entender que se tratava de uma fase complicada da vida em um horário cuja fome furtava toda a atenção de qualquer mente, imagine das crianças (pelo menos em tese, já que naquela escola da periferia do Grande Dirceu a lógica se invertia).
Distrair os alunos seria uma atividade comum para qualquer turma se ela não tivesse a Carla como discente. A professora tentava não encarar a menina que fazia questão de sentar na primeira cadeira da fileira do centro da sala.
Tudo começou no segundo dia de aula quando a estudante tímida abriu a matraca e começou a perguntar assuntos complexos demais. A professora, recém formada e no calor da empolgação do primeiro emprego, vislumbrou uma chance de se destacar na profissão e chamou seu colega das Ciências Exatas para dinamizar mais a aula e responder aquelas indagações. Nada funcionou, os dois profissionais receberam uma bela e complexa explicação das principais fontes para responder algumas daquelas perguntas. Fato que forçou os professores a estudarem três vezes mais do que fariam se não tivessem encontrado Carla no seu caminho.
Certa manhã Carla apoderou-se da biblioteca, a apropriação indevida gerou algumas manifestações de repúdio da biblioteconomista. A pequena autodenominou-se gestora do patrimônio da escola por sentir-se mais apta para manipular todo o arsenal de livros guardados. A biblioteca da escola cristã Betel foi reorganizada, ali surgiram grupos de estudo e o local virou a sede da resistência estudantil, evento que começou a preocupar todos os professores.
Odineide tentou marcar inúmeras reuniões para orquestrar a expulsão da menina e de nada adiantou, pois o Comitê Discente de Inteligência Escolar passou a exigir a criação de um grêmio e a presença de representantes em qualquer decisão tomada no local.
Os professores estavam intimidados, não por alguma ação coercitivas, mas pelas questões apresentadas em sala de aula. Carla formou o Núcleo de Estudos Maiêutica e todos começaram a ler os gregos de forma ilegal. O jornal escolar, que antes só continha desenhos em branco para os alunos brincarem colorindo as imagens, passou a conter mensagens criptografadas com indicações dos dias e horários das assembleias, clubes de leitura ou sugestões de leitura.
A professora, líder da oposição, riscou no quadro de acrílico “profa. Odineide” e quando virou-se para a turma suspirou profundamente enquanto ignorava a mão erguida da pequena Carla. Pediu para abrirem os livros na página 36, que tinha no título… O que era aquilo? O livro estava todo riscado.
“Professora, o comitê estudantil do quarto ano decidiu em assembleia deliberativa que o conteúdo apresentado pelas obras estão um pouco aquém da nossa capacidade de aprendizado. Reformulamos algumas questões provocadas pelos autores e inserimos outras. Nesse caso, como a senhora, senhora não, afinal não temos senhores, já superamos a servidão étnica e etária, não precisamos mais de termos que criem hierarquias. Enfim, como você pode observar, em vez de questionar quem são os nossos parentes e o que eles têm em comum, decidimos que seria mais instigante estudar sobre as descobertas de Mendel e Darwin. Posteriormente podemos aprofundar o…”, disse Carla antes de ser interrompida.
“Carla, não me faça chamar a diretora outra vez”, ameaçou a professora.
“Professora, essa não é a minha decisão, é a decisão dos estudantes. Por enquanto temos o apoio da professora de artes e o do professor de história, mas em breve entraremos com um abaixo-assinado para derrubar a direção e exigir uma nova eleição. Suponho que essa seja uma batalha que você não poderá vencer, por isso nós queremos o seu apoio. Basta aceitar a nova emenda e discutirmos esse conteúdo apresentado. Vamos conversar de igual para igual, só isso. Você tem as referências multidisciplinares e nós temos as dúvidas universais”, respondeu audaciosamente enquanto se aproximava da professora.
Odineide tentou puxar a garota pelo braço esquerdo para leva-la para a diretoria, mas com impulso e assustada a menina mordeu a barriga da professora que logo chamou bedel, vigia, professores, coordenadores e diretora.
“Vocês estão vendo, essa vândala me mordeu, eu fui agredida no meu próprio trabalho. Isso é inadmissível, eu exijo punição! Essa menina está destruindo a escola com essas filosofias”, gritou Odineide enquanto mostrava a marca da mordida.
Indagada na presença da sua mãe, a pequena Carla apresentou a sua carteira de diretora do Clube Max Planck – feita artesanalmente – para ser confiscada pela diretoria. Enquanto explicava que seu comportamento fora meramente em legítima defesa os seus colegas, que gritavam no pátio da escola, exigiam a presença do autodeclarado advogado do grêmio estudantil.
“Eu só sugeri uma mudança na estrutura do conteúdo transmitido, mãe. Nada demais. Não queremos ficar pintando desenhos, nós imaginamos uma escola com discussão de ideias contrastantes. Eu queria uma reformulação do conteúdo e da metodologia de avaliação. Nós criamos uma gincana para debater as ideias de Max Planck e Einstein, mas fomos hostilizados pelo bedel que, além disso, vem censurando o nosso “Slam Científico”. Queríamos uma semana de história sobre a África…”, bradou a menina.
“Dona Lúcia, desculpe-nos ter que chamar mais outra vez a senhora, mas desse jeito não tem como continuar. A sua filha atrapalhou a oração matinal para fazer macum…”, disse a diretora interrompendo a aluna.
“Mais respeito, sua intolerante! Os fascistas não passarão! Nós queremos o mesmo direito para todos os credos, não só para o que você acredita…”, gritou Carla.
“Carla! Parou! Deixa a diretora falar, menina! Não interrompa os mais velhos”, disse Dona Lúcia impaciente.
“Carla, minha pequena. Eu até entendo que você não esteja se sentindo desafiada com o conteúdo da escola, mas por que você mordeu a professora?”, questionou.
“Muito esperto diminuir minhas provocações de forma falaciosa, usando o incidente para fugir da resposta. E sobre a minha postura agressiva eu queria falar sobre o subconsciente. Para me defender usarei alguns arquétipos que poderão justificar a minha performance violenta diante de uma coação severa em sala de aula…”
“Carla, parou! Não sei onde você fica aprendendo e inventando essas coisas, mas parou. Peça desculpas à sua professora agora mesmo!”, disse a mãe de forma fria e ríspida.
“Mãe, mas o medo e as pulsões primitivas…”
“Parou, Carla!”, gritou Dona Lúcia já impaciente.
“Desculpa, professora. Só que você precisa rever…”, insistiu.
“Carla, silêncio!”, gritou a mãe.
A professora Odineide, que estava observando a discussão na porta da sala, entrou na diretoria, caminhou até ficar de frente para a criança, fingiu abraçar Carla e mordeu discretamente o braço da menina. Depois sussurrou “estamos quites” e saiu triunfante pelo corredor.
Foto: Caio Negreiros