Os cães do Theatro, por Alisson Carvalho

Um grupo destacou-se andando pelas ruas da cidade. O alfaiate, que observou curioso, há muito não via um agrupamento daqueles se deslocar para a Praça Aquidabã sem as suas famílias. As senhoras, portando as suas bolsas e todas ornadas com suas joias e vestidos pomposos, apontavam para as casas e dialogavam enquanto caminhavam. José Pereira logo estranhou quando viu, do balcão da farmácia, o grupo passando pela calçada da Botica do Povo e não tardou para cochichar com Lili, sua esposa, suposições sobre aquela atípica marcha.

Até o transeunte menos influente reconheceu rapidamente o rosto de duas daquelas mulheres e o engraxate que passava pelos estabelecimentos oferecendo os seus serviços arqueou-se e franziu os olhos para tentar filtrar os detalhes da cena. O burburinho nos grandes salões teresinenses era de que a cidade precisava de um espaço de entretenimento para suprir a necessidade das famílias que apreciavam a “boa arte” e eles não se envergonhavam do desdém com o Teatro Concórdia.

Na noite do dia 4 de setembro o grupo de senhoras e alguns outros representantes da sociedade teresinense foram exigir do presidente da província, Theophilo, o novo espaço de apresentação. O pedido foi atendido e no dia 21 do mesmo mês uma grande festa foi organizada pala demarcar a colocação da pedra fundamental do edifício.

Todos ficariam incrédulos quando o presidente da província anunciou a feitura do theatre, mas mesmo assim não se furtaram do impulso de tecer críticas severas à primeira planta da casa de espetáculo que recebeu a alcunha ferina de caixa de incêndio. Sensibilizadas pelas críticas, que se tornou um obstáculo, e querendo concretizar a construção do templo das artes, as damas Hermelinda e Lavínia doaram a nova planta do Theatre desenhada pelo engenheiro alemão Alfredo.

Em pouco tempo o entusiasmo tomou de conta de todos, foi quando surgiu o Clube dos Artistas, já aspirando organizar o futuro teatro, porém o cenário político não ajudou a alimentar aquele sonho. As suspeitas transmitidas no boca a boca se concretizaram quando chegaram as notícias da Proclamação da República, pouco tempo depois o Major Taumaturgo toma posse do cargo de presidente republicano e manda recolher o fundo destinado à Comissão de Construção do Teatro impedindo a continuidade do empreendimento.

Falou-se muito naquela obra, foi um dos assuntos que mais despertou a curiosidade do povo. Volta e meia, quando uma nova comissão assumia a liderança das obras, a esperança renascia no seio da sociedade. As pequenas encenações começaram a surgir nas escolas até que no dia vinte e um de mil oitocentos e noventa e quatro o mais novo espaço de entretenimento foi inaugurado. “A fachada inspirada na arquitetura portuguesa, com detalhes greco-romanos e neoclássicos”, fala decorada repetida pela boca orgulhosa da Primeira Dama no evento de inauguração que foi marcado por uma grande festa, um evento que movimentou políticos, mídia e artistas, transformando-se em palanque recheado com lindos discursos sobre a tal da modernidade.

Alguns professores querendo dar bom uso ao espaço tentaram agendar algumas apresentações no espaço que carecia de cenários, camarins, mobiliário e decoração. Aos poucos o povo começou ver o espaço em torno no Theatro ser transformado, foram colocadas palmeiras e a dona Raimunda doou ao diretor da casa dois cachorros de louça que foram colocados nas duas colunas de fronte do teatro.

O falatório começou com os próprios funcionários que tentaram entender a ligação da estrutura do prédio com os dois novos elementos. Uma beata que passava pelo local deu início ao boato que deturpou para sempre o significado daqueles cães. A mulher discursou por horas sobre a imponência dos leões guardiões do espaço que também simbolizavam uma espécie de vigia da praça, quem sabe fora culpa do seu problema de vista, o que não mais importa já que não há como saber os motivos que fizeram com que ela enxergasse nos cães alguma fisionomia de leões. Esse infortúnio fez com que a doadora passasse a culpar o artista por ter possibilitado a margem para aquele erro grotesco.

Apesar do ruído da comunicação, o assunto só saiu da pauta das calçadas e dos salões quando foi estreada a peça “O Pai Desnaturado ou Dom Jorge de Aguiar” pelo Grupo Teatral de Câmara Madureira em mil oitocentos e noventa e cinco. Naquela tardezinha uma fila foi formada não só para assistir à apresentação, como para ver os frequentadores do Theatro e o show de luxo expresso nas vestes e acessórios dos espectadores. Na ausência de assentos o próprio público levava as suas cadeiras e a posição na plateia era dividida pela importância política e pelo ingresso que definia as cadeiras centrais, cadeiras laterais, frisas e camarotes.

O Theatro era assunto dos grandes salões, das classes abastadas, e não se restringia apenas às apresentações teatrais, existiam as convenções literárias, os concertos e as festas artísticas. Era  o espaço de socialização das elites teresinense e que também ajudava a reforçar alguns habitus e valores vigentes.

Teve até quem chegou a duvidar da tal energia elétrica, mas viveram para comprovar a instalação da tecnologia que começou a modificar o estilo de vida dos teresinenses e que trouxe para o Theatro a décima arte causando um alvoroço na boca do povo. Chegaram a dizer que a estrutura do espaço não suportaria tanta gente, mesmo assim, por um bom tempo, o teatro também se tornou um cinema e nunca deixou de crescer e se ressignificar.

 

Fontes de Pesquisa:

Campelo, Ací. Theatro 4 de Setembro 120 anos – história e imagens de um símbolo cultural / Ací Campelo, org. – Teresina: Harley, 2015.

KRUEL, Kenard. Genu Moraes – a Mulher e o tempo. Zodíaco, 2015.

 

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