Arte de Carlos César (@artccesar).
Era um dia comum. Eu estava deitado junto com minha esposa em nosso quarto. Ela dormia tranquilamente, enquanto eu, sem sono como em mais uma de tantas outras noites, lia um livro. Ela sempre achou de uma estranheza enorme esse meu apego por livros. Aliás, desde pequeno eu convivia com essa espécie de asco pelo meu amor à leitura. “Vai sair e pegar mulher”, dizia meu pai, enquanto eu passava horas e horas deitado na cama com um livro nas mãos, ao contrário dos meus irmãos, tão chegados à farra. Eu me habituei aos olhares tortos. Por tudo me olhavam torto: por eu ler tanto, pelo meu corpo magro e fino demais, por minha voz sem gravidade, por minha falta de agressividade…
O sono começava a me embalar. A chuva caía grossa lá fora. Podia-se ouvir trovões quebrarem o silêncio da madrugada. Um trovão cortou o céu e acordei assustado de um sonho. Tinha cochilado com o livro em minhas mãos. Ainda meio leso por causa do acordar repentino, lembrei-me das cenas do sonho: eu corria, fugia de algo, quando algo acertou-me no meio e me partiu em dois. Ri de mim mesmo, por causa da bobeira dos sonhos. “Muita leitura dá nisso”, quase podia ouvir a voz de meu pai dizendo essas palavras, que se repetiam sempre que eu tinha um pesadelo. E, então, com um susto e um grito baixo, vi aquela figura sentada na ponta da cama, me encarando. Corri até o interruptor. Liguei a luz. E a imagem quase me fez cair. O corpo estranho tinha o meu rosto. Era o meu corpo. Mas como era possível? Me belisquei, dei um tapinha no meu rosto. Eu estava acordado. A figura, ao ver minha cara de assombro, riu. Uma gargalhada fina e alta, debochada. Olhei rápido para a minha esposa, que continuava seu sono profundamente.
A figura tinha meu rosto, mas não se vestia como eu. Trajava uma saia jeans e uma blusa vermelha com decote. Nos pés, um salto completava o look. A boca estava colorida com um batom roxo. Ela continuava a me encarar. Aquela figura passou a me acompanhar diariamente. Ia junto comigo para onde quer que eu fosse. No trabalho, dançava como louca, ria alto, rebolava até o chão, falava como queria e tudo o que queria, não se importando com o tom fino de sua voz, não se importando com o rebolar de sua bunda dentro de sua saia. Era livre. E eu seguia com medo de que alguém a visse e reconhecesse nela o meu rosto. Mas não acontecia. Em casa, era a mesma coisa. Sentava-se conosco na mesa do jantar. Ria sempre que minha esposa pegava na minha mão. Quando nos beijávamos (minha esposa e eu), ela gargalhava alto, com desdém, debochando dos nossos beijos. Eu tentava colocar ela para fora de casa, mas não conseguia. Eu não podia contar para ninguém, pois aquilo parecia loucura. Como havia ali, na minha casa, uma figura com o mesmo rosto que o meu, que dançava e ria e gritava e rebolava como bem entendia, e somente eu a via? Enquanto eu e minha mulher fazíamos amor, ela nos encarava com uma cara de reprovação. Eu tentava não ligar para aquela figura parada ali, mas não adiantava. Por vezes, brochei e deixei minha mulher na vontade. Não conseguia mais me concentrar. Não conseguia mais parar de pensar nas suas risadas debochadas, na sua voz fina, no seu jeito de se vestir, no seu rebolar, na sua liberdade.
Já quase não dormia mais. Durante as noites, eu ia com ela até o teto de minha casa e ela me ensinava a dançar. Sim, me tornei amigo daquela figura que carregava consigo o meu rosto. Nós dançávamos e ríamos e rebolávamos e descíamos até o chão. Tudo ali, em cima do teto, durante a noite. Eu acordava feliz todos os dias, apesar das madrugadas em claro que passava junto daquela figura. Aprendia, cada vez mais, a sua liberdade. Tomava para mim todos aqueles “Arrasou, mona”, que ela soltava cada vez que eu ia até chão, e integrei a expressão ao meu linguajar. Do velho padrão preto com cinza, passei a incorporar as setes cores do arco-íris em minhas vestimentas. Não só as sete, mas todas as suas variações. Agora eu vivia em colorido.
Terminei meu casamento, não fazia sentido seguir com ele, aliás, nunca houve. Casei-me somente para o agrado da família e da sociedade. Liguei para o meu pai, já tão velho, e disse-lhe que eu continuava a ler, que continuava a falar fino, a ter o corpo magro e feminino, e que continuava trocando baladas e bebedeiras por páginas de livros. Ele me respondeu com um “Tá” e desligou o telefone.
No trabalho, alguns ainda me olham torto quando apareço com minha calça apertada e minha blusa das meninas superpoderosas. E eu não ligo nem um pouco. Que olhem. Que admirem. Que falem… Hoje, a figura foi embora. Disse-me que daqui em diante eu deveria seguir sozinho, mas que não voltasse ao velho preto e branco. E não voltarei. Seguirei cada dia mais saindo do mofo em que eu estava. Seguirei cada dia mais aproveitando minha liberdade e correndo livre por entre as ruas.