Às três da tarde, em frente ao rio
Cada vez mais tenho me deparado com uma literatura densa, misteriosa, intrínseca e contundente no Piauí. A literariedade em obras contemporâneas piauienses vem assumindo uma forma única, expressiva e de grande relevância no cenário local. Quando iniciei a leitura do livro de Tiago Rabelo, “as vozes desse rio”, pude constatar essa afirmação e vivenciar, por meio da palavra, o cenário piauiense dentro da temática de “memória e rememoração”, instigando uma leitura pautada também nas lembranças subjetivas e particulares que o Piauí me traz.
“Saudade boa é quando não dói: é a alegria da rememoração. Já que o tempo não nos permite voltar e reviver, nosso apego é a memória. ” (p.20)
É impossível interagir com o texto de “as vozes desse rio” sem rememorar uma translúcida passagem pelas margens do Rio Parnaíba. É impossível não recordar o pôr do Sol na Avenida Maranhão entre o cinza asfalto e a fortaleza dos trilhos que carregam destinos. Dividida em quatro partes, essa obra traz, ainda, uma prosa poética que verbaliza a essência memorística de um tempo, de lugares, de pessoas e de sentimentos. A unificação de um lirismo rico de significados a temáticas cotidianas faz de “as vozes desse rio” uma obra inundada de poesia, de subjetividade, de encontro e de identidade.
É certo que cada livro lido nos transforma de uma maneira diferente, alguns nos induz a projetar “futuros” outros, ainda mais eficazes, na minha opinião, nos propõe o sentimento de reviver momentos, nos faz sentir a luz de uma época, e nos assegura de não nos soltarmos de um passado que foi bom. A obra de Tiago me proporcionou as duas coisas: passado e futuro. Me permitiu alcançar com muita sensibilidade e leveza a magia que só a poesia é capaz de proporcionar. Desde a apresentação até o último poema lido, eu me senti sob forte correnteza e ouvi as vozes desse rio que Tiago Rabelo tem nas mãos e no coração.
“O certo é que a poesia é só isso: ela transforma o mundo em nós, moldando nossa visão, ampliando as margens, criando bifurcações. A poesia da resistência perfura o ócio, despreza o senso comum. A poesia subverte o mundo – tem o dom. Hoje ela habita os cantos das salas, das malas, das ruas de muitos quando é desprezada. Mas em nós, não! Nossa poesia nos abriga e vai, dobrando as esquinas, invadindo as calçadas. Ela navega os nossos mares e chega às praias como uma onda que inunda e nos mostra que a vida é tudo e é quase nada, que o todo é bem mais que tudo; que tudo é só uma metáfora.” (p.19)
O texto contido em “as vozes desse rio” é um grito de resistência, porque poesia é resistência. Escrever e condensar a alma em palavras; ou acreditar que a palavra é possível; ou mesmo “inventar”, “fingir”, como Fernando Pessoa o disse e o quis, é um ato, antes de qualquer coisa, de coragem. O tempo, a memória, o passado, o lugar, o amor, a paixão e o erotismo são marcas deixadas na pele de quem entra em contato com essa obra. Tiago Rabelo expressou sua intenção de nos fazer sentir, como ele, as águas desse rio. E que nome dar a esse rio? O rio é vermelho? E se eu jogar uma pedra no rio, isso assusta o peixe? Ouçam as vozes desse rio. Em suma, lhes digo: eu sou apenas um pequeno peixe encontrando morada. Essa foi uma leitura de reencontro e de grandes aprendizados.
“O poema das pedras é suor que escorre lembranças e silêncios.” (p.37)
“Às três da tarde, em frente ao rio vivo de leito quente deparo-me com a tangência unificada de dois mundos, ora semelhantes, ora distintos. Contemplo do outro lado a cidade escape dos amantes, ora encontrados, ora perdidos. Às três da tarde, em frente ao rio vivo atravesso o meu olhar sobre a ponte: grito, busco, proclamo um nome desconhecido. Onde andará aquilo que o meu coração procura? ” (Haia Saer)
Por: Marciléia Ribeiro
Tiago Rabelo (Um garoto que se curva para a água):
“O retrato dentro do retrato e as vozes da memória. (…) Alguém que transborda a infância de dentro, a leveza líquida das águas; é rio que corre e não cansa nunca. É. O rio não repousará enquanto houver crueldade no mundo que o rodeia, porque o rio corre para dentro…. Um rio rente à grandeza do mar que o destruirá. Mas o rio está preso às memórias do rio que não é mais. (…)” – Tiago Rabelo
*(Fotos retiradas do acervo pessoal de Tiago – Instagram)