O folclorista e entusiasta cultural Noé Mendes

As gerações mais recentes do Piauí já devem ter ouvido falar em “Noé Mendes” a partir de espaços que poderíamos chamar de “lugares de memória”, tais como: o Espaço Cultural, na Universidade Federal do Piauí; o Auditório Noé Mendes, no Centro de Ciências Humanas e Letras da UFPI; ou a Avenida Noé Mendes, no bairro Dirceu Arcoverde. Mas qual o motivo dessas homenagens a essa figura que muitos da minha geração apenas ouviram falar? Foi professor, folclorista, vereador da cidade de Teresina e entusiasta cultural. Noé Mendes de Oliveira (ou simplesmente Noé Mendes, como ficou conhecido) nasceu no dia 17 de janeiro de 1940, em Simplício Mendes (PI), e faleceu aos 20 de outubro de 1990, em Teresina (PI). É considerado um dos maiores agitadores culturais do estado do Piauí em sua época, particularmente da cidade de Teresina. Entusiasta, articulador e militante da cultura popular, promoveu a cultura expressa no folclore como elemento constituinte da identidade piauiense durante as décadas de 1960 a 1980. Combateu por uma “cultura integrada”, que, segundo ele, seria “o contato com o povo, ouvi-lo, saber de suas necessidades e vontades, desenvolver um plano integrativo de cultura, para que a população fosse os agentes de suas necessidades na cultura”.

Nome Completo: Noé Mendes de Oliveira

Descrição: Professor, folclorista, vereador da cidade de Teresina e entusiasta cultural.

Data de Nascimento: 17/01/1940

Local de Nascimento: Simplício Mendes-PI

Data de Falecimento: Teresina-PI

Local de Falecimento: 20/10/1980

Escrito por: Valério Negreiros

De seminarista a entusiasta cultural

Filho de seu Joaquim Mendes de Oliveira e Isabel Elisa Rodrigues, Noé Mendes foi o décimo segundo filho, numa família de dezesseis irmãos. A cidade de Simplício Mendes, no interior do Piauí, oferecia poucas oportunidades para quem desejava crescer na vida, principalmente nos estudos. Sendo assim, seu Joaquim enviou Noé Mendes para a capital, a fim de que o filho continuasse seus estudos no Seminário, lugar privilegiado de formação humana e religiosa. Entre reza, disciplina e muito estudo, o jovem Noé viveu sua adolescência no Seminário. Continuou os estudos em Olinda (PE), no Seminário Regional do Nordeste, até 1962, quando foi agraciado com uma bolsa de estudos seguindo para a Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, na Itália, formando-se em Teologia. Essas experiências proporcionaram ao jovem uma formação diferenciada. As vivências em diversos espaços permitiram a Mendes tornar-se um poliglota, dominando o latim, o grego, o italiano, o francês, o espanhol e o alemão. Sua estadia na Europa se deu até o ano de 1966.

O interesse pela cultura piauiense nasceu de seu retorno da Europa, quando passou a perceber e conhecer mais das manifestações locais, de um Piauí rico em festas, tradições, danças e costumes populares. A “descoberta” despertou o interesse para a pesquisa e a promoção da cultura, momento que podemos considerar como o desabrochar do seu “eu-entusiasta”. Foi assim que começou a organizar as Semanas de Folclore, na cidade de Teresina, evento que contava com a participação de um público formado por grupos e brincantes das danças populares de diversas regiões do estado e era comemorado aos 22 de agosto, o dia nacional do Folclore.

O entusiasta cultural

Entusiasta pode ser entendido como aquele que sente ou demonstra entusiasmo, quando, em suas expressões e vontades, seu espírito aflora revelando um sentimento profundo de amor e interesse. Os primeiros passos de Mendes como entusiasta foram se consolidando a partir dos espaços ocupados por ele, ao mostrar-se uma figura simples, ativa, apaixonante e desprovida de vaidades.

Em 1972, quando da notícia das primeiras visitas da arqueóloga Niède Guidon a São Raimundo Nonato, Noé Mendes mobilizou a Secretaria de Educação e Cultura do Estado para a documentação das pinturas rupestres da região. Tal atividade firmou uma parceria nos anos de 1973 e 1974, quando novamente foram realizadas missões arqueológicas, mas agora integrando equipes da Universidade Federal do Piauí, do Museu Paulista da Universidade de São Paulo e do Museu Nacional. O entusiasta propôs um convênio entre a UFPI e o Museu Paulista, a partir do qual, em 1976, foi formado um curso de aperfeiçoamento em Arqueologia. Esse curso constituiu os primeiros e principais esforços de formação e orientação para a pesquisa arqueológica no estado. Para Mendes, o Piauí era merecedor e fazia-se necessário que um trabalho sobre o patrimônio arqueológico dessa espécie fosse à tona, pois seria injusto não socializar aquela riqueza, que era conhecida somente pelos pesquisadores especializados no assunto. Justificava, pois, no Piauí, não existia uma documentação visual do patrimônio considerado rico e vasto. O resultado de toda a investigação contou com um relatório sobre as áreas pesquisadas, um filme em Super-8, com duração de 30 minutos, e uma coleção de mil slides a cores, selecionados entre 4275 slides. Porém, sua imersão no mundo da arqueologia fora deixada de lado e Noé voltou-se para os aspectos da vivência e manifestações do povo, mais precisamente na cultura popular.

O folclore e as danças populares

Noé Mendes passou a observar sua terra natal com outros olhos e a enxergar o potencial riquíssimo das tradições populares piauienses. A partir de suas pesquisas, começou a escrever artigos sobre as manifestações populares que caracterizavam o homem piauiense, registrando danças, culinária, arte e tradições. Aos poucos, entrou em um universo ao compreender como o povo se identificava com a cultura, as maneiras de pensar e agir, os modos de fazer típicos do local. Durante a década de 1970, publicou suas pesquisas na Revista Presença, periódico lançado em 1974 pela Secretaria de Cultura do Estado do Piauí. Nos primeiros artigos, retratou as manifestações folclóricas do Piauí.

As principais danças e folguedos cristalizados por Mendes eram aqueles encontrados de maneira mais comum em todo o Estado: Bumba-meu-boi, o Cavalo Piancó, o Reisado, o Pagode (típico da cidade de Amarante) e a Marujada (Parnaíba). Segundo o intelectual, antes de ser uma dança, o Bumba-meu-boi era uma representação comparada a uma farsa teatral, com personagens e situações caricatas, baseada em circunstâncias onde as personagens se comportavam de maneira extravagante. Ainda que pelo geral mantivesse uma quota de credibilidade, a dança do boi representava a “civilização” do couro, cujo principal personagem foi o Piauí durante a colonização do Nordeste.

Com relação ao Pagode de Amarante, Mendes o destacou como uma “tradição puramente africana, com muito batuque, muito requebro de negras velhas e jovens […] os participantes da dança não cantam, mas gritam mostrando seu contentamento. Só dois cantadores, geralmente profissionais, garantem as cantorias até o dia amanhecer”.

Já o Reisado, também conhecido como Folia de Reis, era marcado por “rebuliços, comicidade e alegria na brincadeira”. Para Mendes, os cantos de chegada e saída do reisado representavam “as mais belas criações populares da música nordestina”. Quanto à Marujada, dança encontrada na década de 1970 por Mendes em Teresina e Parnaíba, era característica de cidades costeiras, como uma manifestação típica de cantos e diálogos, ficando a dança de lado, destacando-se uma “atuação plástica”.

Assim, Mendes, em seu relato sobre as danças folclóricas piauienses, situa em seu contexto físico e espacial as manifestações do Piauí, um cenário social que é formado a partir das convivências dentro de casa, nas festas das comunidades, em grupos, passados via memória.

A cultura como libertação

Noé Mendes entendia a cultura como fator de libertação do povo, ao passo em que deveria ser assumida por intelectuais, governos e agentes da sociedade, em benefício da população. A partir desse ponto de vista, as instituições deveriam atuar para “libertar” o homem piauiense. Libertar, ajudando-o a conquistar a si mesmo, despertar, desenvolver e orientar suas potencialidades culturais. Nesse sentido, seu discurso e prática iam de encontro para a democratização da cultura no sentido de elevar o povo piauiense a um nível de desenvolvimento, a fim de que lhe fosse possível participar dos bens culturais. É daqui que surge o seu entendimento de uma integração ativa dos valores culturais com as comunidades, que ele chama de “dimensão comunitária da cultura”, ou seja, uma relação baseada “num desenvolvimento sistemático, intencional, social, científico, moral, artístico, no qual se revela um sentido humano, um esforço pessoal e coletivo pela libertação de todas as formas de limitação humana”. Noé Mendes assim incentivava a participação do folclore na vida dos alunos nas escolas. Segundo ele, esta prática seria uma forma eficiente de fazer com que esses alunos criassem a própria consciência de valorização da cultura, a partir, por exemplo, da criação e manutenção de “museus folclóricos” em que fosse possível explorar os bens culturais de cada localidade.

Folclore Brasileiro: Piauí (1977)

A obra faz parte de uma série editorial que contemplou 14 estados brasileiros, organizada pela Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro. Iniciada em 1977, foi planejada sob uma forma sistematizada, com o objetivo de possibilitar o conhecimento e estudos comparativos das diversas manifestações, das mais variadas regiões do país.

O convite para a participação nessa série ficou a cargo do diretor-executivo da CDFB, Bráulio Nascimento, direcionado a todos os secretários-gerais das Comissões Estaduais de Folclore do país. Noé Mendes, que exercia o cargo desde a reorganização da Comissão Piauiense, em 1975, foi o responsável pela escrita do exemplar correspondente ao estado do Piauí.

O livro trouxe uma abordagem rica na linguagem popular, expressa em danças e cultos, além de enfatizar a arte, o artesanato e a culinária característica do Piauí. Reuniu diversos textos publicados antes, em periódicos locais, bem como alguns artigos inéditos. O enfoque do livro buscou situar o leitor, apresentando-o às principais características dos componentes culturais do folclore, apontando principalmente a formação deste como resultado da miscigenação das culturas portuguesa, indígena e africana. A visão de folclore piauiense, para Mendes, só poderia ser compreendida a partir dessa formação histórica do Piauí, que desenvolveu os elementos básicos da estrutura do folclore local, com suas lendas, mitos, danças, religiosidade, linguagem típica, ou seja, o que ele compreendeu como as manifestações do povo.

A linguagem popular, a literatura oral, as danças folclóricas, os folguedos folclóricos, os cultos populares, a medicina folclórica, as brincadeiras infantis e todo esse universo foi apontado por Mendes em seu livro. Na determinação de divulgar o Piauí em seu tempo e espaço, o folclorista assim compreendeu a necessidade de situá-lo em seu contexto, os cenários sociais projetando as descrições do povo.

Na Fundação Cultural Monsenhor Chaves

Com o perfil dedicado à cultura, Mendes foi indicado para compor a equipe que criaria uma instituição cultural na cidade de Teresina, a Fundação Cultural Monsenhor Chaves, na gestão do prefeito Wall Ferraz.

Com a redemocratização e as decorrentes eleições municipais, foram grandes as manifestações de intelectuais que reivindicaram uma instituição cultural para a cidade de Teresina. A prefeitura, então, planejou criar uma fundação cultural, com o propósito de atender às demandas mais urgentes com relação à cultura no município. A criação da FCMC partiu dos esforços de muitas pessoas com interesse de que se consolidasse um debate sobre a cultura no estado e, especificamente, na cidade de Teresina.

Encabeçada por Noé Mendes, Aldenora Mesquita e dona Eugênia Ferraz, esposa de Wall, concretizou-se a Fundação que leva o nome do historiador piauiense Monsenhor Chaves.

Noé Mendes pretendeu elaborar e realizar na cidade de Teresina, por meio da FCMC, uma ação cultural que atingisse todo cidadão teresinense, “para que ele se tornasse agente de sua própria transformação”. As atividades partiam de ações conjuntas com as associações de moradores, grupos de jovens, centros sociais e grupos de teatro. A atuação da Fundação partiu de ações voltadas para a educação, a arte e a promoção de atividades culturais.

Para Mendes, enquanto órgão cultural, a FCMC deveria esquecer a preocupação de ser apenas uma promotora de eventos, seria, para ele, a grande jogada da instituição cultural que estava dirigindo, o município precisava vivenciar a sua própria dinâmica cultural, ao criar condições para que as manifestações permanecessem, deixando de lado a ideia de “amparo”. Desse modo, Mendes assumiu o caráter dinâmico da cultura como um processo de difícil realização, mas não impossível quando adotadas medidas de atuação, principalmente quando estas interagissem com o povo.

Fotos

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Obras

Folclore Brasileiro: Piauí (1977)

Referências

NEGREIROS, Valério Rosa de. Por uma cultura integrada: Noé Mendes de Oliveira e a piauiensidade nas décadas de 1970 e 1980. 217 fls. (Dissertação) Mestrado em História, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói- RJ, 2016.

NEGREIROS, Valério Rosa de. Noé Mendes de Oliveira: uma biografia histórica (1953 – 1989). 126 fls. (Monografia) Graduação em História. Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2013.

OLIVEIRA, Noé Mendes de. Folclore Brasileiro: Piauí. Rio de Janeiro: MEC, DAC, FUNARTE, CDFB, 1977.

OLIVEIRA, Noé Mendes de. A arte do Piauí/ The art of Piauí. In: Brasil: Arte do Nordeste/Brazil: Art of the Northeast. Rio de Janeiro: Spala Editora, 1986.

OLIVEIRA, Noé Mendes de. A cultura como libertação. Presença, Teresina, ano 01, n. 2, nov. 1974, p. 2.

OLIVEIRA, Noé Mendes de. O Folclore na escola. Presença, Teresina, ano 02, n. 4, dez. 1975, p.47-49.

OLIVEIRA, Noé Mendes de. O Patrimônio pré-histórico do Piauí: perspectivas de preservação e estudos. Presença, Teresina. Ano 2, n. 04, dez. 1975.

 

Última atualização: 07/01/2019

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