Crítica do livro “Os que Bebem Como os Cães”, de Assis Brasil, por Marciléia Ribeiro

O enigma do sangue na terra 

Isso é mais que uma crítica. Começo esse texto com um pouco de luto no peito. Começo esta escrita com o coração febril, molhado, duro, compacto e palpitante. Meus pulsos clamam pela capacidade de trazer a você, leitor, uma ideia, uma súplica: UM GRITO! Falar de homens presos, sejam em quais forem as amarras, não tem sido uma tarefa fácil nos dias de hoje. Jogar as correntes e aferrolhar pensamentos tem sido a brincadeira do momento. Os poderosos, detentores de um poder que busca subjugar almas, super-heróis de oprimidos que oprimem, jogam as peças no tabuleiro e culminam a jogada com a sagacidade brutal de quem sepulta a liberdade com um estratégico, mas desonesto, xeque-mate. Eles estão vencendo, parece! Parece.

“Os que Bebem Como os Cães” constitui-se como uma obra atemporal, um romance que desfaz toda a estrutura romântica e que é incrementado com um enredo de realidade crua, densa, histórica, cruel e universal. É um livro que deve ser lido principalmente por aqueles que se enxergam como detentores da liberdade do outro, que se julgam com o poder de deter por meio da violência física, moral ou psicológica os direitos e a dignidade do seu semelhante.

Um homem preso, sem passado, sem memória, sem condições adequadas de sobrevivência é massacrado e torturado dia após dia numa cela escura. Sem comunicação, sem tempo cronológico, sem mesmo saber o seu próprio nome, de onde viera e o porquê de estar ali. Trata-se da vivência de um desconhecido que teve sua liberdade tomada e que pagou um alto preço por não se submeter, por pensar, por questionar, por se impor. Essa é a história de um ser humano cuja alma foi tirada do próprio corpo, cuja a carne, a pele e o espírito foram feridos brutalmente pelo massacre psicológico de estar perdido e entregue ao nada e submisso à violência brutal e física daqueles que têm farda, armas e uma “autoridade deturpada” sobre os demais.

Curioso como o corpo é capaz de adaptar-se a ínfimas condições de vida. Doloroso entender que as necessidades físicas/biológicas perdem a sua condição vergonhosa que a elas foram dadas diante de mãos algemadas e de consciência desvalida. A obra de Assis Brasil nos mostra a rotina de um Jeremias que até certo ponto ninguém conhecia, assim – como eu e você. Um homem que possuía história, vida, família, mas que para sobreviver precisa entregar-se à posição mais baixa que o seu corpo pôde tomar e sorver uma sopa quente e sem gosto, como um cão; como um cachorro faminto e desesperado por alimento:

“Arrastou-se e notou que as algemas nos pulsos estavam mais frouxas, ou já não doíam tanto. Arrastou-se – era um prato, eu soltava um pequeno fio de fumaça. Arrastou-se até conseguir colocar o rosto bem próximo e sentir a quentura do líquido (p.12).”

 

“Sorveu o líquido quente: de joelhos, as mãos algemadas para trás – já conseguira uma relativa facilidade para que o alimento descesse sem se engasgar. A língua parecia ter crescido um palmo e pegava a gosma e a levava à garganta, assim como a tromba de um elefante ou a língua de um tamanduá. E ouviu o seu próprio barulho ao se alimentar cadenciado, bocado após bocado, um cão domesticado e ativo. Só lhe faltava a coleira e o rabo. Podia até grunhir e escolher o canto para as suas necessidades (p.46).”

A escrita de Assis Brasil segue friamente uma rotina: A cela; O pátio e O grito. Perdido no tempo, na ordem cronológica dos fatos, e ainda por cima tomando uma sopa que continha substâncias entorpecentes, Jeremias conseguiu aos poucos fazer uma associação desses três ambientes/momentos.  Na cela, onde primeiro se encontrou, a escuridão era “ampla e envolvente”, e foi nesta mesma cela que ele reencontrou o seu Deus, ou o rato, ser tão desprezado pelos humanos, mas a quem Jeremias deu o nome de Deus, que no ápice de sua solidão e desespero se configurava como um ser divino:

Como chamar o ratinho? Mãe ou Deus? Não sentia repúdio ou náusea pela lembrança: eram palavras que podia lembrar. Deus está de volta – seria bom pensar nisso quando o ratinho voltasse a aparecer. O pequeno Deus, o pequenino Deus, a sua presença (p.64).”

O pátio era o único lugar onde Jeremias podia nutrir alguma esperança. Era o “lá fora”; era o ambiente em que podia compartilhar anonimamente e ao mesmo tempo publicamente a sua dor; era onde podia se desfazer de suas “imundícies” e onde podia exercer algum ato de bravura, mesmo sendo açoitado depois. No pátio, Jeremias visualizava e almejava por liberdade e plantava em seu coração a semente da luta, da voz e do GRITO! O Grito era a extensão do pátio e da fuga que tanto desejava. Depois, pôde compreender que a voz era sim um feixe de luz e de esperança em meio à escuridão da sua solidão e de suas algemas. Outros homens, igualmente presos como Jeremias, vez por outra gritavam algum nome, um nome de mulher, o nome de Deus ou um nome que representava alguma memória recuperada.

“O grito era a única realidade ali – um desabafo, um reequilíbrio de emoções, uma esperança, o sinal de uma vida já vivida. Podia sentir isso: e passou também a viver em função dos gritos, assim como tinha até então vivido em função do prato quente de sopa. E o grito seria uma nova etapa temporal de seu cárcere – o tempo de seu corpo, de suas emoções limitadas entre quatro paredes escuras (p.19).”                       

Leitura farta, dolorosa, massacrante, mas cheia de esperança. Do começo ao fim nos impregnamos com o despertar comovente do personagem, do homem que lutou e nos mostrou a prepotência do poder, a opressão e a violência as quais eram submetidos os sonhadores. O ser humano que nos diz que só podemos olhar para a liberdade olhando para frente. (…)

Hoje é o aniversário de Jeremias: que viveu a escuridão; que tomou a sopa; que reencontrou Deus; que foi ao pátio; que gritou; que desejou ter liberdade e que a conquistou da forma mais dolorosa e pungente que alguém poderia conquistar. Hoje é o aniversário de Jeremias: que foi filho, pai, marido, professor – que ensinou ARTE e que viveu e morreu por liberdade: LI-BER-DA-DE! Essa é uma história que não acaba. Tantos e tantas que vivem hoje a fatídica opressão por não poder gritar ou exercer o seu direito de ser: “Não desistam!” Parece que eles estão vencendo, mas só parece!

O grito aqui é de liberdade. O convite fica em aberto para que cada voz aqui entoada encontre nos doloridos dias de Jeremias uma chama de esperança mesmo que os pés estejam caminhando por estradas escuras. Jeremias deixou o seu sangue na terra como um enigma: claro e decifrável. A leitura da obra “Os que Bebem Como os Cães” é direcionada especialmente àqueles que lutam e que não se entregam, e também àqueles que precisam aprender a respeitar a condição humana de cada pessoa. “Os homens de farda não querem que os homens de farrapos se levantem” – mas a liberdade é um pássaro azul que canta no coração de todos!

Levante a cabeça e grite!

Por: Marciléia Ribeiro

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